Iremos ver, passo a passo, algumas características deste poder para que possamos, minimamente conhecer quem, na realidade, representa.
a) A sua origem
Qual é, na verdade, a sua origem? O chifre pequeno sai de um dos quatro chifres sucessores da grande ponta (chifre) ou avança ele a partir de um dos pontos cardeais, isto é, um dos quatro ventos dos céus? A tradução clássica bíblica refere que, quando a ponta grande foi quebrada “subiram no seu lugar quatro (chifres) também notáveis, para os quatro ventos do céu. E de uma delas (chifres) saiu uma ponta (chifre)” – v. 8,9a (segundo versão tradicional).
A maior parte das traduções bíblicas, neste preciso trecho, tal como podemos ler, dá a entender que o chifre pequeno sai de um dos quatro chifres que sucederam à ponta grande que foi quebrada. No entanto, num exame mais atento à sua construção gramatical, este mostra algo de diferente, ou seja, indica que o chifre pequeno, ou o poder por ela representado, sai, não “das quatro pontas/chifres” que sucedem à “ponta grande”, mas sim de um dos “ventos do céu”!
Assim sendo, o chifre pequeno, contrariamente ao que a tradução tradicional dá a entender, surge de um dos quatro ventos, ou seja, oriundo da direcção de um dos pontos cardeais. Este pormenor é bastante importante para uma possível identificação deste poder que, desde sempre, tanta controvérsia tem gerado entre os intérpretes do texto bíblico que, vêem nele a personagem histórica, oriunda destes chifres – Antíoco Epifânio IV.
b) A sua natureza
Lendo o v. 9a com mais profundidade, é-nos revelado mais um pormenor que nos dá a conhecer que este poder, ao surgir, é “(…) mui pequeno”.
À luz do texto original, este poder tem um começo muito débil, pequeno; mas, apesar desta origem ele desenvolver-se-á em diversas direcções, adquirindo desta forma um considerável poder. Comparativamente, a linguagem aqui empregue é diferente da que se encontra no capítulo anterior – Daniel 7.8 – quando descreve o pequeno chifre saído de entre os chifres do 4º animal.
c) A sua expansão geográfica
O crescimento, em poderio, deste poder far-se-á conhecer e sentir através de uma expansão horizontal. O verbo que, na primeira parte do texto do v. 9a, é traduzido pelo verbo “cresceu”, deveria de ter sido vertido com o sentido de - deslocar, avançar – o que implica uma expansão geográfica horizontal e não como poderá fazer crer, um crescimento vertical. Nas Sagradas Escrituras encontramos alguns exemplos que reforçam este ponto de vista, em que o contexto é claramente – avançar com um fim militar, de conquista – cf. Deuteronómio 20.1; I Crónicas 5.18;20.1.
O texto continua a descrever a trajectória do chifre pequeno e revela que este – “cresceu muito”. A ideia subjacente é de um crescimento em estrutura dominante, ou seja, alargando os seus tentáculos. A direcção desta expansão vai no sentido de incrementar o prestígio do chifre pequeno. Este cresceria, expandir-se-ia para “o meio-dia (Sul - Egipto), o oriente (Este - Síria) e para a terra formosa (Norte - Palestina)” – cf. Ezequiel 20.6.
d) A sua actividade
- v. 10 – “se engrandeceu até ao exército do céu; e a alguns do exército e das estrelas, deitou por terra e as pisou”.
Ao longo das Sagradas Escrituras encontramos esta mesma expressão - “exército do céu” – algumas vezes; na sua grande maioria encontramo-la num contexto de culto aos astros: - Deuteronómio 4.19; 17.3; II Reis 17.16; 21.3, etc. Noutros contextos, a mesma expressão alude a seres celestes: - I Reis 22.19; Neemias 9.6; II Crónicas 18.18; Jeremias 33.22. Assim sendo, no primeiro caso, o chifre pequeno gradualmente se irá fortificando ao se identificar com o “exército do céu”, num culto idólatra. No segundo caso, é prestado culto a estes seres celestes para deles se obter poder.
Por outro lado, este “exércitos” poderá também significar o povo de Deus sobre a terra – cf. Êxodo 7.4. Assim sendo, claramente se percebe que o poder exercido pelo chifre pequeno se abaterá sobre este povo.
O teor da segunda parte do versículo “e a alguns do exército e das estrelas, deitou por terra e as pisou” – v. 10b – encontramo-lo claramente interpretada, mais à frente, como sendo a “destruição dos fortes e do povo santo” – v. 24. Inegavelmente, em causa está – o povo de Deus - cf. Daniel 7.27.
- v. 11 - “E se engrandeceu (o chifre pequeno) até ao príncipe do exército e por ele (o chifre pequeno) foi tirado o contínuo e o lugar do seu santuário foi lançado por terra”. Vejamos este verso em várias fases:
a) Primeira parte
– “E se engrandeceu (o chifre pequeno) até ao príncipe do exército”.
Como já o referimos, certos intérpretes identificam este - chifre pequeno “que se engrandeceu” - como sendo Antíoco Epifânio. De igual modo, - o “príncipe do exército” - é apontado por estes, como sendo “o sumo sacerdote Onias III, deposto em 175 a. C e assassinado a mando de Antíoco Epifânio”.
- O termo traduzido por “príncipe” por vezes é vertido por: chefe ou maioral; esta designação por vezes é aplicada ao Sumo Sacerdote, como se poderá ver em diversos textos bíblicos: I Crónicas 15.12; 24.5; Esdras 8.24. Mas a expressão “príncipe do exército” nunca designa um ser humano. A quem se referirá, pois, esta designação? Se compararmos outro texto onde é empregue a mesma palavra – Josué 5.13-15 – notamos que a linguagem desta personagem para com Josué é a mesma que no passado foi empregue com Moisés no episódio da sarça ardente – “tira os teus sapatos de teus pés, porque o lugar onde em que tu estás é terra santa” - Êxodo 3.5. No livro de Daniel, esta palavra refere-se habitualmente a um ser celeste: Daniel 8.25;10.13,21;12.1.
Ora, neste último texto – Daniel 12.1 – este “príncipe” chama-se Miguel. Assim, para uma maior consolidação de interpretação, se consultarmos alguns textos do Novo Testamento – Judas 9; I Tessalonicenses 4.16 - então, não existem quaisquer dúvidas de que se trata do Filho de Deus, Jesus – “o Príncipe dos Exércitos do Senhor”.
Abramos aqui um parêntesis para averiguarmos a autenticidade desta interpretação profética, a saber, se o sumo sacerdote Onias III, personifica o “príncipe do exército”.
Certos comentaristas fazem duas afirmações: 1- que este sumo sacerdote, Onias III, está relacionado com a profecia das 70 semanas, visto “personificar o “Príncipe, o Ungido” – v. 26 (cf. Daniel 9.24-27)”. 2- que este “foi deposto pelo rei Antíoco Epifânio IV no ano 175 a. C..” 3– que “o período das 70 semanas começam deverão ser contadas a partir do decreto do rei Ciro, da Pérsia, ou seja, em 538 a. C., e não o de Artaxerxes, em 457 a. C.” Vejamos tudo isto em várias etapas:
- Se tivermos presente o que revela a profecia, esta diz-nos, a propósito, que: - “depois das sessenta e duas semanas será tirado o Messias” – Daniel 9.26. Como já vimos, estas semanas são proféticas. Assim estamos perante um período longo de tempo. Assim, se cada semana tem 7 dias (profeticamente falando estes correspondem a anos – cf. Números 14.33,34; Ezequiel 4.6), então teremos 434 anos (62 semanas x 7 dias).
- De acordo com a profecia, o “Ungido” deveria de ser exterminado no final deste período – 434 anos. Se, tal como foi dito, as 70 semanas têm como ponto de partida o ano 538 a. C., então veremos que esta ocorrência deveria de acontecer no ano 104 a. C. (538 – 434 a. C.). Dão-nos a conhecer que este o sumo sacerdote Onias III foi deposto em 175 a. C. e morto em 171 a. C.. Então, que faremos do ano 104 a. C., visto este não corresponder, nem ao ano da deposição, nem ao da sua morte?
- Perante o exposto, ou: 1- a data do decreto do rei Ciro, o Persa, 538 a. C., tal como dizem, não está relacionado com o período da profecia das 70 semanas – o que é altamente provável. 2- o “Ungido” da profecia não tem qualquer relação com o sumo sacerdote Onias III – o que poderá muito bem acontecer.
Portanto, desde já, podemos ver que o sumo sacerdote Onias III, não corresponde, de modo algum, ao “príncipe do exército” – tal como veremos na próxima lição.
b) Segunda parte
- “foi tirado o contínuo (perpétuo)”.
Devemos dizer que a palavra “sacrifício” introduzida no texto das diferentes versões não existe no original, pois é um acrescento feito por alguns tradutores. Segundo o texto, este poder simbolizado pelo chifre pequeno irá atentar contra o “contínuo/perpétuo/diário”, tradução da palavra hebraica – tamid – a qual aparece 103 vezes no Antigo Testamento.
Para que saibamos do que estamos a falar, precisamos de saber o que este é e o que representa, segundo as Escrituras, este tamid? “Segundo - Êxodo 29.38-42 e Números 28.2-8 -, o serviço quotidiano compreendia o holocausto de um cordeiro de manhã e outro à tarde. (…). Este serviço quotidiano é o sacrifício perpétuo – tamid”.
À luz do contexto esta apropriação tem que ver com o serviço no santuário. Mas qual? Só existem dois santuários nas Sagradas Escrituras: 1- o terrestre – Êxodo 25.8,9; 2- o celestial – Hebreus 8.1-6.
O terrestre, o qual é mencionado no Antigo Testamento foi destruído no ano 70 d.C.. Assim, o único a funcionar como “Seu santuário”, no tempo do “chifre pequeno” é, efectivamente, um outro santuário, ou seja - o celestial. Como facilmente se compreenderá, o ataque deste poder - chifre pequeno – é de cariz religioso, significando a apropriação dos méritos do ministério de Cristo por serviços substitutivos de pendor humano que tornam ineficaz o serviço perpétuo (tamid) de Cristo em favor da humanidade.
c) Terceira parte
- “o lugar do seu santuário foi lançado por terra”.
Iremos analisar este versículo um pouco mais em detalhe:
1- A palavra – lugar (makon) - na maioria das vezes, no Antigo Testamento, designa: a morada, a habitação de Deus - seja ela no Céu – I Reis 8.39,43,49; II Crónicas 6.30,33,39; Isaías 18.4, etc - ou na Terra – I Reis 8.13; II Crónicas 6.2.
2- A expressão “lugar do seu santuário” aparece no Antigo Testamento unicamente aqui; esta palavra - santuário (miqdash) – pode, de igual modo, designar o templo de Deus na Terra como no do Céu – Salmo 68.35; 78.69; Jeremias 17.12.
3- Vejamos o resto da frase: - “foi lançado por terra”
Certos intérpretes deste versículo, na tentativa de o harmonizar com a personagem Antíoco Epifânio, vão ao ponto de o traduzir de maneira a dar a entender que foi este monarca seleucida que, devido a sua acção, “profanou” , “aboliu” o santuário.
Esta expressão - “foi lançado” (hushlak) – comporta em si a noção de: atirar, lançar. E, entre as cerca de 125 vezes que aparece no Antigo Testamento, não sugere ou insinua algo que tenha a ver com “profanação” ou algo de semelhante, mas tem o sentido de um acto de destruição. Assim, esta (destruição do santuário) visará o tornar ineficaz o quanto se passa, acontece no santuário, o qual se circunscreve, uma vez mais, numa dimensão celeste.
Aqui trata-se, como facilmente se compreenderá, de um contexto não terreno, humano, mas cósmico. Este poder – o chifre pequeno – desenvolverá as suas actividades e estas direccionadas contra Deus, de maneira que fará que o santuário celeste perca todo o seu significado, onde Cristo ministra a favor do Seu povo. Esta dimensão cósmica de “lançar por terra” o santuário, enfatiza, na realidade, a acção contra o ministério celeste de Cristo devido ao estabelecimento de um sistema rival de mediação. Isto dito por outras palavras – o chifre pequeno – tudo fará para afastar a atenção do ser humano da função de mediação, intercessão exercida pelo Sumo Sacerdote – Cristo e, como corolário desta acção, privará a humanidade das bênçãos resultantes do seu ministério celestial.
Este poder aqui representado que, como veremos mais à frente, não tem qualquer relação com o rei seleucida Antíoco IV Epifânio, mas sim com a continuação da Roma pagã, isto é, a Roma papal. Esta, ao colocar o sacerdote, o padre, como substituto da intercessão de Cristo no Santuário celestial, de certa forma derruba o quanto ali se faz a favor do crente. Vejamos, a este respeito o que nos informa o Catecismo: - “(…) a confissão dos pecados perante o sacerdote é elemento essencial deste sacramento (sacramento da Confissão) (…). É chamado sacramento do Perdão, porque, pela absolvição sacramental do sacerdote, Deus concede ao penitente – o perdão e a paz”. Ou ainda – “(…) com efeito, os bispos e os presbíteros é que têm, em virtude do sacramento da Ordem, o poder de perdoar todos os pecados “em nome do pai, do Filho e do Espírito Santo”.
No confessionário, o padre perdoa pecados usando esta fórmula. No sacrifício da missa o sacerdote católico romano torna-se um outro Cristo, na medida em que sacrifica no altar como Cristo, apresentando-se para salvação dos fiéis. O lugar que, por direito, pertence exclusivamente a Cristo, está ocupado por substitutos enganadores. Através da Missa e do Confessionário muitos são afastados do contínuo ministério de Cristo exercido actualmente no Santuário celeste. Através de cerimoniais elaborados, em nome de Cristo, o verdadeiro ministério de Cristo é obscurecido e posto completamente de lado.
O perdão total que Cristo deseja conceder a todos quantos confiam na Sua perfeita e gratuita justiça, tem e continua a ser usurpada por um sistema que toma o Seu lugar. Em lugar de confiar directamente em Cristo, no que fez e faz em nosso favor, o crente, desta forma, é ensinado a depender de uma igreja que, pela sua forma de actuar, dispensa tudo o que Cristo oferece!
- v. 12 - “(…) e lançou a verdade (emeth) por terra; fez isso e prosperou”- cf. 7.25
Note-se que a palavra – emeth (verdade), também pode significar: fidelidade /lei. Esta palavra, deriva, por sua vez, de uma outra – aman – da qual deriva a palavra – Amen – que por sua vez significa: obedecer, ser fiel. As Escrituras associam o conceito Verdade/fidelidade com o de lei – cf. Malaquias 2.6; Salmo 43.3; 119.7,43. Este – Ámen - é a palavra que proferimos no final de cada oração, traduzindo um verdadeiro e fiel: - assim seja.
Este texto de Daniel foi compreendido e traduzido por comentadores judeus, no sentido de que o chifre pequeno se moveria com o propósito de rejeitar a lei – “Ele, o pequeno chifre, anulará a Lei e a observância dos mandamentos”.
No livro de Daniel encontramos algumas vezes esta palavra “emeth” e, em certos casos ela designa a autêntica revelação oriunda de Deus – Daniel 8.26; 10.1,26; 11.2
Assim, Daniel 8.12 e 7.25 não só se interligam entre si como também contêm a mesma mensagem profética – atentar, não só contra a Lei como também contra o Seu autor – Deus.
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