O autor (padre Carreira das Neves) declara acerca do livro do profeta Daniel que “as referências, na 1ª parte, a diversos reis estão cheias de erros históricos”, a saber:
O rei Baltazar é filho de Nobómidas e não de Nabucodonosor.
“A História não conhece nenhum rei chamado Baltazar”.
Iremos abordar estes dois “erros” apontados pelo autor e tentar repor a verdade dos factos – a verdade histórica - e tentar compreender que, o profeta Daniel não tem qualquer erro histórico, tal como se quer fazer crer. Vejamos:
a) Filho ou neto de Nabucodonosor
Antes de mais, não esqueçamos que o nosso autor é um sacerdote! Portanto, é inadmissível que, na qualidade de teólogo, faça com esta afirmação ligeira e gratuita, tábua rasa do pensamento oriental tal qual o encontramos nas Escrituras! Esta objecção não tem em conta que, na própria Bíblia, mais precisamente no Antigo Testamento, contrariamente ao que diz o autor, um rei importante é chamado pai de todos os que o sucederam. Verifica-se tal procedimento nalguns casos. Eis alguns exemplos bíblicos:
Abiam é chamado filho de David (I Reis 15:3), quando na realidade é filho de Roboão (I Reis 14:31) e neto de Salomão (I Reis 14:21).
Asa é chamado filho de David (I Reis 15:11), quando na realidade é filho de Abiam (I Reis 15:8), e neto de Roboão (I Reis 14:31).
Josafá é chamado filho de David (II Crónicas 17:3), quando na realidade é filho de Asa (I Reis 22:41) e neto de Abiam (I Reis 15:8).
Atila é chamada filha de Omri, (II Reis 8:26), quando na realidade era filha de Acab (II Reis 8:18) e neta de Omri (I Reis 16:28).
Por estes breves exemplos podemos ver que o profeta Daniel não “inventa” ou “erra” quando relata que “Há no teu reino um homem em quem reside o espírito do Deus santo. Em vida de teu pai (Nabucodonosor, seu antecessor) (…). Por isso, o rei Nabucodonosor, teu pai, o constituíra (Daniel) chefe dos escribas” – Daniel 5:11.
O autor, por ter uma mentalidade ocidental e separado no tempo e no espaço, certamente que, por lapso, se esqueceu de tal hábito! Mas, repetimos, como teólogo que é, e devido à craveira que tem e do respeito que nos merece, deveria ter presente este aspecto, de elementar cultura, no tocantes às mentalidades!
Segundo a mentalidade oriental, era natural esta forma de tratamento, tal qual nos é relatada pelo profeta. Assim, se Nabucodonosor é chamado – pai - é porque “nas línguas semíticas a palavra pai aplicava-se também ao avô, ao antepassado ou mesmo a um predecessor ocupando a mesma função”.
Não seria a primeira vez que um usurpador, ao querer legitimar a sua posição ligava-se ostensivamente a um monarca ilustre do passado. Nabonidus tinha contraído matrimónio com uma filha de Nabucodonosor . Ora, perante o que acabámos de ver, será assim tão difícil chegar à conclusão que, afinal, o rei Nabucodonosor era avô de Belshatsar (Baltazar), apesar de, biblicamente falando, ser tratado por pai? Cremos que não! O que aqui encontramos, prezado leitor, é coerência com a mentalidade do século VI a.C., data do livro de Daniel e não erros, como afirma o nosso autor! Portanto, este tratamento nada tem de anormal ou errado. Continuamos a defender que o livro foi composto no século VI a. C. e não no século II a.C., tal como afirma o autor diversas vezes !
Assim, portanto, cremos ter mostrado que esta contestação do autor é ligeira e não tem qualquer fundamento.
c) Baltazar (Belshatsar): o desconhecido da História
Vejamos um ponto de História sobre o clima vivido em Babilónia para que, minimamente, possamos compreender o que realmente se passou para que este Belshatsar (Baltazar) tenha entrado na História, contrariamente ao que o autor afirma. Vejamos:
Em 562 a.C. Nabucodonosor morre após um reinado de 43 anos. Em escassos 5 anos, três soberanos lhe sucederam: Awel-Marduk (562-560 a.C.), Nergal-shar-usur (560-556 a.C.) e Labashi-Marduk (556 a.C.). Aborda-se aqui um dos períodos mais agitados da História de Babilónia. Este último rei Labashi-Marduk foi destituído por Nabu-na-id (Nabonidus) que em 556 a.C. se apodera do trono. Este era filho do sacerdote Nabû-balât-su-iqbi e de uma sacerdotisa do culto da deusa Sin a Haran.
Nabonidus tentou implantar o culto desta deusa em detrimento do deus nacional Marduk. O soberano torna-se impopular e, em 548 a.C., entrega o poder nas mãos do seu filho primogénito Bêl-shar-usar (Belshatsar) e vai viver para Teima .
Portanto, a ser verdadeiro o testemunho da História e por que é que deveríamos de duvidar, temos aqui uma situação de co-regência deste Belshatsar (Baltazar)! Em função do exposto, pensamos que será, no mínimo, normal que a arqueologia, por exemplo, em termos documentais, refira o nome do monarca em título e não o de um regente! Por outro lado, se este não estivesse a exercer uma “co-regência, como se compreenderiam as promessas deste Belshatsar (Baltazar), feitas ao profeta Daniel, caso ele decifrasse o que a mão misteriosa tinha escrito na parede?
Vejamos o que a Bíblia nos diz acerca das promessas de Belshatsar: “(…). Se tu, pois, podes ler o que está escrito e me dás a sua interpretação, serás revestido de púrpura, trarás ao pescoço um colar de ouro e tomarás o terceiro lugar no governo do reino.” – Daniel 5:16 (sublinhado nosso).
Perante o exposto e realçando a concordância entre a História e o relato bíblico, temos:
1º lugar - O monarca titular = Nabonidus;
2º lugar - O co-regente = Belshatsar (Baltazar);
3º lugar - O profeta = Daniel.
Assim, perante tal realidade, como facilmente se compreenderá, pensamos que o regente não poderia oferecer ao profeta, para o distinguir e homenagear - o máximo! Mas, unicamente, o que estava ao seu alcance, isto é: - “tomarás o terceiro lugar no reino” – exactamente como o texto refere! Portanto, uma vez mais perguntamos: prezado leitor, quem terá razão? A História? A Bíblia? Ou o autor? Ao leitor de tirar a conclusão que se impõe!
Para terminar este pequeno conjunto de reflexões, gostaríamos de realçar o que, em nosso entender, aquilo que parece uma contradição do próprio autor! Este afirma que “O rei Baltazar é filho de Nabónides”. Tanto quanto saibamos, o texto bíblico não o refere! Ora, se a Bíblia é omissa em tal afirmação e se o autor a faz, é porque este a obteve de outra fonte, não é verdade? Mas de qual? O autor não nos informa!
Mas, sem termos quaisquer capacidades de adivinhação, afirmamos qual possa ter sido a sua fonte; das duas uma: 1- A História; 2- A Arqueologia! Então, se assim o é, porque é que depois passa a afirmar que “a História não conhece nenhum rei chamado Baltazar”?
Será que a fonte histórica do autor contém: por um lado, a afirmação que: “O rei Baltazar é filho de Nabónides”; por outro, este afirma que esta “não conhece nenhum rei chamado Baltazar”? Convenhamos que esta fonte, a existir, é muito estranha! Ou só será teimosia e má vontade do autor, em querer, a todo o custo, contrariar o relato bíblico! É este procedimento que, quanto a nós é inexplicável, visto que é oriundo de um sacerdote! O que é que lhe parece, prezado leitor? É muito estranho, não acha? Consideramos que, no mínimo, este último deveria defender o Livro que serve de apoio ao exercício do seu múnus eclesiástico – as Escrituras!
d) Antíoco IV Epifânio
Acerca deste controverso personagem, o autor transcreve e comenta o texto do profeta: “A fractura e o nascimento dos quatro chifres em lugar dele, significam quatro reinos que saem desta nação mas sem que tenham a mesma potência. No fim do seu império (…) surgirá um rei carregado de crueldade e manha. O seu poder crescerá, todavia de modo algum por ele mesmo. Causará extraordinárias devastações; será bem sucedido em suas empresas; exterminará os poderosos e o povo dos santos. Graças à habilidade fará triunfar a perfídia (…). Levantar-se-á contra o Príncipe dos príncipes, mas será esmagado sem intervenção de mão humana.” - Daniel 8:22-25
Para o autor, a figura principal aqui descrita, isto é: “um rei carregado de crueldade e manha” corresponde ao rei Seleucida Antíoco IV Epifânio (175-163 a.C.) e não outra qualquer personagem. A exemplo do que temos feito até aqui, teceremos alguns comentários acerca desta interpretação do autor que, digamos em abono da verdade, nada tem de inédita!
Se recordarmos o texto profético, este revela que dar-se-ia o nascimento de “quatro chifres”. O autor esclarece-nos que estes quatro chifres são quatro generais que sucederam a Alexandre Magno, a saber: Cassandro, Lisímaco, Seleuco e Ptolomeu. Para o que nos interessa, reteremos os dois últimos: Ptolomeu e Seleuco. Estes lutaram entre si pelo controlo da Palestina, zona geográfica que foi governada pelos Ptolomeus. “Enfim, o rei (Seleucida) Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.), finalmente, consegue esmagar toda a resistência egípcia (governo dos Ptolomeus) e entrar vitoriosamente em Judá em 198 a. C.”.
Isto quer dizer que, quer pelo lado dos Ptolomeus quer pelo dos Seleucidas, os reis se foram sucedendo. O ramo dos Seleucidas, o qual nos interessa para o caso, de modo algum se enquadra na descrição feita pelo profeta Daniel, por várias razões:
1- Porque este “rei carregado de crueldade” surgirá após o reinado destes quatro generais. Contrariamente, a História nos revela que, até chegarmos a este vencedor absoluto (Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.) e resultante único dos tais quatro generais, alguns reis Seleucidas o antecederam, a saber: 1- Seleucos I (313-280 a.C.); 2- Antíocos I (280-261 a.C.); 3- Antíocos II (261-246 a.C.); 4- Seleucos II (246-225 a.C.); 5- Seleucos III (225-223 a.C.); 6- Antíoco III, o Grande (223-187 a.C.); 7- Seleucos IV (187-175); 8- Antíoco IV Epifânio (175-163 a.C.).
2- Nem Antíoco IV Epifânio (175-163 a.C.) é o tal quinto rei que se levantaria, após os quatro anteriores, visto que este, ainda tem alguns reis que o antecederam, como acima se viu. Portanto, este rei não é o 5º, mas o 8º!
3- A profecia refere que “sem mão será esmagado”. Para dar mais força ao seu raciocínio, o autor avança a autoridade de - I Macabeus 6:8-16 e II Macabeus 9 - para reforçar a figura de Antíoco IV Epifânio! Mas como teremos a oportunidade de ver mais abaixo, nas contradições dos Livros Apócrifos – e entre estes está (I e II Macabeus), que o autor cita em defesa da sua tese (!) - nos mostrarão que, a morte deste monarca, conheceu, pelo menos, três razões diferentes! O que por si só, faz jus ao seu título de – Livros Apócrifos (não inspirados) – sem que tenham merecido, em consenso geral, qualquer crédito em matéria profética. Portanto, livros a ler na vertente histórica, é verdade, mas mesmo assim, com cuidado!
Perante o exposto, sob o ponto de vista histórico, como se poderá afirmar e manter tal opinião e, ainda muito menos quando esta parece ser apoiada num livro Apócrifo! Quanto a nós, preferimos ficar com a História, visto que “contra factos não há argumentos”! E o prezado leitor?
Bibliografia:Joaquim Carreira das Neves, OFM, op. cit., p. 117.
Idem, p. 119.
Jacques Dukhan, op. cit., p. 207.
A.R. Millard – “Daniel 1-6 and History”, in Evangelical Quaterly, 49, 1977, p. 72.
Joaquim Carreira das Neves, OFM, op. cit., pp. 87,116-117 e 134.
André Parrot, Babylone et l’Ancient Testament, Neuchatel, 1956, pp. 87-91.
Cf. P. Garelli e V. Nikiprowetzky, Le Proche-Orient Asiatique – Les Empires Mesopotamiens – Israel, Paris, Ed. P. U. F., 1974, pp. 154,155
Cf. Gleason L. Archer, op. cit., pp. 425-429 (excelente visão de conjunto na área restrita dos problemas históricos do livro do profeta Daniel).
Joaquim Carreira das Neves, OFM, op. cit., p. 117
Idem, p. 119
Idem, p. 131.
Ibidem
J.A. Thompson, La Bible à la lumière de l’Archeologie, Paris, 1975, p. 220.
Idem, pp. 219 e 220, 224.
Idem, - ver quadro de conjunto, p. 408.