quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O SONHO MILENARISTA "AOS MIL CHEGARÁS, DOS MIL NÃO PASSARÁS"

Tendo como pano de fundo tal contexto de opulência comparativamente à vivência de uma população cada vez mais pobre, não seria de esperar outra reacção – acalentar o sonho milenarista! A felicidade eterna, o retornar a uma idade de ouro, ao Paraíso perdido. O milenarismo está ligado à escatologia cristã, ou seja, ligado aos acontecimentos relacionados com o Tempo do Fim deste mundo pleno de contradições aberrantes. Esta ideia se alicerça na tradição apocalíptica e estreitamente ligada à problemática do anticristo; este, assim como os seus seguidores, estão irremediavelmente ligados a “uma falsa exposição das Escrituras, onde tentará provar que ele é o Messias prometido pela lei”. No fim, é neste sentido que vai a interpretação bíblica, quando refere que, no final dos tempos, “(…) há-de manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição, o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que leva o nome de Deus, ou o que se adora, a ponto de tomar lugar do Templo Deus e se apresentar como se fosse Deus. A vinda do ímpio será acompanhada, graças ao poder de Satanás, de toda a sorte de milagres, de sinais e de prodígios enganadores” – II Tessalonicenses 2:3,4,9
Uma das principais causas do florescimento destes múltiplos Movimentos religiosos, é a tentativa de encontrar uma resposta para um velho problema – a solene tríplice pergunta: Quem sou; donde vim e para onde vou? Estes Movimentos respondem a uma área básica no ser humano. Todos nós precisamos de ser amados, de nos sentirmos necessários; sentirmos que a nossa vida tem um rumo e um significado. Os indivíduos que passam por crises de identidade ou que sofrem de problemas emocionais são, particularmente, susceptíveis a estes ditos Movimentos que nem sempre agem, convenhamos, de boa fé e entram em flagrante conflito com a suprema Verdade – as Escrituras! É aqui, reconheçamos, que a Igreja tradicional tem falhado e que, quanto a nós, continua a falhar, ao não ter encontrado respostas para o homem do nosso século e que continuará, quiçá, infelizmente, a passar ao lado destas mesmas necessidades… e no fundo, é a sua suprema missão!
Onde está a luz que a Igreja tradicional deveria irradiar, visto dizer ser a continuidade de Cristo e o prolongamento do Seu ensino? Quanto a nós: em lado nenhum, biblicamente falando! Tal como o homem da passagem de nível, esta está no seu posto, mantém uma fachada de religião, mas a luz genuína da Verdade desapareceu por completo! Resta uma luz baça emanada pela Tradição e alimentada pelo Magistério da Igreja. Uma luz resultante de tantos compromissos que, de Verdade, cada vez mais, só vai tendo, infelizmente, o nome! Tudo é política, nada de bíblico! Multidões seguem o Sumo Pontífice! Mas, não para ouvir a Palavra de Deus, mas o homem político! E vendo bem, quem se interessaria pela primeira vertente? Quem estará disposto a ser “uma nova criatura em Cristo Jesus” – II Coríntios 5:17, num mundo onde cada vez mais “a abarrotar de coisas supérfluas, enquanto a multidão esfomeada se vê privada do necessário”.
Porque se tivesse tal discurso, altamente redutor e impopular, para os nossos dias, quem o seguiria? Assim, passa-se para a política, prática em que se especializou, com tremenda mestria, ao longo da sua existência, como instituição! Mas, para não se descaracterizar totalmente, então que se mencione, ou menos, o nome do Cristo, valha-nos isso! Perdeu-se, por completo a identidade! No passado, como no presente, muitos a abandonam, não porque queiram fundar uma nova Igreja, mas porque já não têm lugar naquela que não lê, não vive, não ensina nem pratica a verdadeira vontade de Deus expressa nas Escrituras e não nos ditames Conciliares!
Como explicar a decadência da fé? Como interpretar o declínio do cristianismo, religião que milhões professam, mas em que poucos praticam as suas virtudes? O filósofo e teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard, a este respeito assim se expressa: “O cristianismo é uma pródiga ilusão. Nos países chamados cristãos existem milhares e milhares de pessoas que nunca entraram numa igreja, nunca pensam em Deus, nunca mencionam o Seu nome a não ser em blasfémia. Jamais pensaram nas suas responsabilidades para com Deus. Entretanto, todas estas pessoas, mesmo aquelas que não crêem na existência de Deus, são reconhecidas como cristãos nas estatísticas oficiais, são sepultadas como cristãos pela igreja e certificados como cristãos para a eternidade.”
E não é assim de igual modo no nosso País em que, ostensivamente, se declara Católico Apostólico Romano? O que é que significa pertencer a esta confissão religiosa? Qual o vínculo? Qual a mudança a exigir ou propor em Cristo Jesus? Unicamente, socialmente falando, parece bem! Enfim não passa de um acto social quando deveria ser de fé! Tal como dissemos, milhares acorrem onde estiver o papa. Repetimos, para ouvir a Palavra de Deus? Quem se importa com esta vertente que, no fundo, é a razão de ser da Igreja! Mas, eis que surge uma outra razão unicamente para ver e saudar, de certa maneira, um homem político-religioso - o Homem vestido de Branco - igual a tantos outros que já pertencem ao passado, que já passaram à História e, consequentemente, ao esquecimento!

Bibliografia:
Jacques Le Goff, La Civilisation de l’Occident Médiéval, Paris, Ed. Flammarion, 1982, p. 167
Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Lisboa, Publicações Europa-América, 1976, p. 83
Citado por Enoch de Oliveira, Ano 2000, Angústia ou Esperança, S. Paulo, Ed. C. P. B. 1988, p. 124

sábado, 20 de novembro de 2010

A IGREJA DE ROMA

Como definir esta confissão religiosa, esta instituição, este colosso? Não iremos estudá-la de uma forma exaustiva, pois não é o nosso propósito. Iremos, isso sim, realçar de uma forma sintética e simples a génese deste complexo sistema religioso que criou raízes profundas, em particular, no ocidente. Segundo o nosso entendimento, esta confissão religiosa está, à luz da Bíblia, ao mesmo nível das outras suas congéneres! Enfim, só com uma única vantagem, se assim se poderá dizer! É, em termos de registo, a mais velha, pois quanto ao resto, nem mais nem menos! Apreciaremos como ela é para que nos possamos aperceber se esta tem assim tanta autoridade, a ponto de, teimosamente, continuar a catalogar tudo e todos! E, o que é mais curioso, poucos são os que ousam catalogá-la! Será por receio?! Ou porque esta não tem quaisquer elementos que a possam identificar como uma Seita, visto ser detentora da Verdade?! Tecnicamente, a confissão religiosa que não tiver, como base, as Escrituras – o Cânone – será tida, como facilmente se compreenderá, por falso e espúria!
Cabe ao leitor, à medida que formos avançando, tirar as ilações que se impõem! Esta confissão religiosa, como veremos mais abaixo, é uma verdadeira caixa de surpresas. Mas, para já permaneçamos na identificação desta confissão religiosa à qual, uma grande franja da população portuguesa, diz pertencer!

1- O Arranque
Na década de 60, mais precisamente no ano 63 a.C., o general romano Pompeu afogou, em sangue, as revoltas da Judeia e “milhares de judeus foram trazidos a Roma integrados no seu cortejo triunfal”. Como já vimos, quanto aos seguidores de Cristo, estes retiraram-se, antes da destruição do Templo e de Jerusalém, para a pequena cidade de Pella.
Daqui, depois, para o resto do mundo conhecido de então. Assim o encontramos relatado, após a morte de Jesus, por Plínio, em 112, numa epístola ao imperador Trajano. Este escreveu: “Os templos estão quase desertos (…) e a superstição não só contaminou as cidades, como se propagou às aldeias e aos campos do Ponto e da Bitínia”.
O império, à medida que o tempo ia passando, estava a ser minado por toda a espécie de males. Um destes, internamente, era sem sombra de dúvida, a religião! A implantação desta é bastante vigorosa ao ponto de inquietar o imperador Nero; este considerava-a uma traição aos deuses e, consequentemente, ao Estado, visto que “só é perseguido aquilo que ameaça”. A História da Igreja passará por algumas fases. Destas, destaquemos algumas:

1- A sua abertura aos pagãos;
2- Evangelização dentro do império romano;
3- Consolidação – lutas contra os judaisantes e as heresias.

Os cristãos eram catalogados como uma verdadeira praga, pois eram acusados de todo o tipo de crimes! Estes, em sua defesa, replicavam: “Acusais-nos de falsos incestos, enquanto vós cometeis os verdadeiros”; ou ainda, por toda e qualquer leve suspeita eram “aprisionados como cristãos, sem outro motivo de acusação”.
Por outro lado também poderiam ser culpados de ateísmo, porque se recusavam a homenagear os deuses e o império. Deles se dizia: “rebaixam os templos como se eles fossem casas de morte; rejeitam os deuses; gozam com as coisas santas. Por que se esforçam por manter escondido e secreto o seu culto? O que é honrado não teme a luz do dia e só o que é mau permanece em segredo. Por que é que não têm altares, templos ou imagens conhecidas? Mas, de onde vem esse Deus único, solitário e abandonado que não conhece nenhuma nação livre, nenhum reino? Só a miserável e insignificante raça dos judeus honra esse Deus. Um Deus fraco, aliás, visto que tanto Ele como o Seu povo estão subjugados aos deuses de Roma”. (sublinhado nosso). (Estas imagens, curiosamente, como veremos mais abaixo, só irão aparecer mais tarde), o que não deixa de ser expressivo)!
Ora, mediante este contexto que acabámos de descrever, por se estar sob uma constante suspeita, era imperioso, não só resguardar-se de todos os ataques exteriores à sua fé, como a necessidade premente de viver e partilhar esta mesma fé, através de símbolos que fossem, unicamente, conhecidos pelos aderentes, todos aqueles que tinham e partilhavam a mesma esperança - os cristãos!

a) O Peixe
Os cristãos, por terem uma religião diferente da estatal e maioritária e, por esta simples razão eram considerados como - “seita” e “praga” – indesejável! Estes tinham que encontrar qualquer escape para poderem contornar este clima de suspeição tão desfavorável à sua fé. Para manter e fortalecer aquilo em que criam, era necessário o contacto e a ligação entre eles, o cimento que os unia.
Como fazer? Como se poderiam encontrar para a partilha da fé e prestar culto a Deus sem que tal pudesse levantar quaisquer suspeitas, quer dos restantes concidadãos, quer das autoridades civis e religiosas? Era necessário encontrar um símbolo que revelasse, que contivesse tudo, mas que, ao mesmo tempo, tivesse a grande particularidade de permanecer anónimo para o exterior! Finalmente, foi encontrado um símbolo – um criptograma – que representava o Filho de Deus, um - Peixe!
A língua circulante era o grego. Ora, esta palavra, nesta língua escreve-se assim: Ichthus. Se retivermos as iniciais desta palavra, então encontraremos não somente o nome de Jesus, como também, por feliz coincidência, os títulos que, enquanto esteve no seio dos homens, foi conhecido, a saber:
• (I)êsous = Jesus
• (Ch)ristòs = Cristo
• (Th)eou = Deus
• (Y)iòs = Filho
• (S)ôter = Salvador
Neste nome, portanto, está contido tudo o quanto, nesta época, era necessário para recordar Jesus, na Sua globalidade. Assim, como podemos ver, ao juntarmos as diferentes iniciais, como dissemos, não somente formam a palavra peixe, como também se torna numa frase perfeitamente compreensível para os cristãos: Jesus Cristo Filho de Deus Salvador.

Em cima dos peixes pode ler-se:

“O Peixe dos Viventes”
1- Jesus – Salvador: Este título foi proclamado quando os anjos anunciaram o Seu nascimento, naquela noite, aos pastores que guardavam os seus rebanhos nos campos: “ Hoje na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor” – S. Lucas 2:11. De igual modo, o título de Messias iremos encontrá-lo no teor do libelo acusatório contra Si, quando foi apresentado a Pilatos, ao dizerem: “Encontrámos este homem (…) a dizer-Se, Ele próprio, o Messias” – Lucas 23:2. (sublinhado nosso). Jesus, Filho de Deus, “este título não era somente reservado aos monarcas. Também era aplicado a todos aqueles a quem se atribuíam forças divinas” .

2- Jesus – o Senhor: Que dizer da referência a este título? Para abreviar, recordaremos somente que, nesta época, era muito perigoso chamar alguém de “Senhor”! E porquê? Porque “o título religioso de - Senhor - era aplicado às divindades dos cultos mistérios. Este culto reflectiu-se no dos imperadores e dos reis orientais. Na altura das perseguições, a simetria tornara-se antagonismo, os cristãos deveriam escolher entre o Kurios Christos (Senhor Cristo) e o Kyrios Caesar ( Senhor César).”
E o desafio era tal, que encontramos o reflexo desta escolha, que deveria ser feita publicamente, por todos aqueles que se encontravam confrontados com ela. Veja-se o que diz o apóstolo S. Paulo a este respeito: (…) esta é a palavra da fé que nós pregamos. Porque, se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e creres no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo” – Romanos 10:9. A aclamação - Jesus é o Senhor - concorria com a pretensão política-religiosa dos imperadores de serem reconhecidos como - Senhores - visto que César é Senhor (Kurios Caesar)!
Para enfrentar tal decisão, para reconhecer e dizer publicamente que: - o Senhor - não era o imperador - mas Cristo Jesus! Só algo de superior fazia com que se fizesse tal opção! S. Paulo irá admoestar e encorajar os crentes, ao dizer: “(…)… ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão por influência do Espírito Santo”- I Coríntios 12:3
Jesus, ainda no seio dos Seus discípulos pode afirmá-lo sem quaisquer ambiguidades “ Vós chamais-Me Mestre e Senhor, e dizeis bem, visto que o sou” – S. João 13:13. Só que este direito “senhorial” de Jesus sobre cada um de nós deverá ser real e não faz de conta! Contra isto Jesus se insurgiu, ao dizer: “Porque me chamais de Senhor, Senhor, e não fazeis o que Eu digo?” – S. Lucas 6:46. Portanto, implica militância! Não ser cristão aparente, de fachada, mas viver à altura do que se diz ser!

3- Jesus – Salvador: Ele comportava, no tempo, uma dupla vertente: 1- Médica; 2- Social. Quanto à primeira, estava ligada ao deus da Medicina, Asclépios, que “era o «Salvador», aquele que traz a cura da doença”. Em relação à segunda, ela tem que ver com a alforria, libertação dos escravos.
Se aplicarmos estas noções à vertente espiritual, então Cristo Jesus não somente nos cura da doença do pecado que nos conduz, irremediavelmente à morte (cf. Romanos 3:23;6:23), como também nos liberta da escravatura que este mesmo pecado impõe a todos os que a ele se entregam (cf. João 8:34; Romanos 6:17,18; Tito 3:3)

Este símbolo fez o seu percurso e ainda subsiste nos nossos dias gravado na capa de algumas edições bíblicas! Acerca deste símbolo, são bastante significativas as palavras de Tertuliano (220 d.C.)! Este quando fala acerca do baptismo, associa este acto, símbolo de fé, à imagem do peixe. A este respeito diz: “Víboras, cobras, serpentes procuram, em geral, os lugares áridos, sem água; ao passo que nós, pequenos peixes, assim denominados a partir do nosso ICHTYS, Jesus Cristo, na água nascemos e nos salvamos permanecendo nela”.

b) Rotas-Sator
Vejamos um outro criptograma descoberto em Pompeia. Este é conhecido pelo – Quadro de Rotas-Sator . Muitas interpretações têm sido dadas na tentativa de se conhecer o seu real significado. Este quadro apresenta-se sob duas formas:
Estas cinco linhas estão dispostas de tal forma que podem ser lidas em todos os sentidos. À primeira vista, a significação do quadrado é obscura; talvez queira dizer: “Arepo, o semeador, velando pela sua charrua, mantém com cuidado as suas rodas”. Uma outra tradução possível: “O Deus que semeia (o evangelho) segue as esferas (o universo) com cuidado”. Arepo, talvez alusão camuflada a Deus, o que não é impossível de todo! Ora veja-se: (A)lfa – Princípio; (R)ex – Rei; (E)t; (P)ater – Pai; (O)mega - Fim. O que daria, a junção das palavras uma frase tipo: Deus Pai, Alfa e Ómega. Recordando assim quanto o próprio Deus diz a Seu respeito (cf. Isaías 41:4; 44:6;48:12).
Por outro lado, o motivo Alfa e Ómega era muito acarinhado pelos primeiros cristãos. As letras do quadrado podem ser agrupadas e formar um anagrama que nos dá um duplo Pater Noster (Pai nosso) em forma de cruz; assim como a repetição do A (Alfa) e do O (Ómega), reforçando a ideia de que Cristo crucificado é o Alfa e o Ómega da História da humanidade (Apocalipse 1:8;21:6;22:13).
Note-se ainda que o anagrama contém um T (Tau) (símbolo da cruz), entre o (A)lfa e o (Ó)mega nos lados do quadrado:
Em 1926, o alemão Felix Grosser fez este esquema por transposição anagramática e cruciforme. Verifica-se aqui, recordamos, a oração do Senhor Jesus – Pater Noster (Pai nosso) – e os símbolos do Alfa e do Ómega que são, respectivamente, a primeira e a última letra do alfabeto grego e que significam no Apocalipse “o Princípio e o Fim”, isto é a grandeza de Deus – Apocalipse 22:13.
Portanto, tal como já o dissemos, facilmente se poderá imaginar que os cristãos se tenham servido igualmente deste puzzle para testemunharem da sua fé em períodos de maior aperto e perseguição religiosa.

c) O Escândalo
Este título faz-nos recordar as palavras do apóstolo S. Paulo endereçadas aos crentes de Corinto: “nós pregamos a Cristo crucificado escândalo para os judeus e loucura para os gentios” – I Coríntios 1:23.
Por que é que os gentios não podiam crer no Cristo crucificado, sendo para eles, portanto uma loucura? A resposta, tendo em conta a mentalidade da época, é fácil de dar e, acima de tudo, de compreender. Um Deus ignominiosamente condenado e executado, seria possível crer n’Ele ou na Sua doutrina? O reflexo do peso deste acontecimento, nas mentalidades, já o vimos acima, quando contemporâneos dos cristãos dos primeiros séculos disseram: “(…) Mas, de onde vem esse Deus único, solitário e abandonado que não conhece nenhuma nação livre, nenhum reino? Só a miserável e insignificante raça dos judeus honra esse Deus. Um Deus fraco, aliás, visto que tanto Ele como o Seu povo estão subjugados aos deuses de Roma”.
Sejamos sérios! Como aceitar um Deus desta espécie e respectiva doutrina? Sejamos razoáveis e inteligentes! Mas era esta, repetimos, a mentalidade da época, a qual compreendemos perfeitamente inserida no seu preciso contexto histórico.
De igual modo, para um judeu, por seu lado, ver um dito “Messias” crucificado era, antes de mais, um insulto às suas esperanças messiânicas, de cariz meramente político. Depois, um Messias sofredor era, na época, - uma noção totalmente estranha. Nenhum judeu, no tempo de S. Paulo, teria a ideia de associar o Messias com o - Messias de dores - descrito pelo profeta Isaías no capítulo 53!
Os cristãos, apesar de sofrerem os maiores vexames públicos devido à sua fé, permaneciam inabaláveis. A História dá-nos a conhecer um caso interessante que ilustra perfeitamente bem esta determinação.
O desenho que segue foi descoberto no Monte Palatino, em Roma, na escola dos pajens imperiais. É um desenho do século III. Representa um garoto com o braço levantado ao céu numa atitude de adoração. E o que é o objecto da adoração? Um ser crucificado, tendo um corpo de homem com uma cabeça de burro! Pode-se ler o que está escrito por baixo do desenho, que diz: “Alexamenos adora o seu Deus”.
Gozam com este jovem! Mas não parece que tivesse tido grande efeito, pois outra inscrição contendo uma escritura diferente diz: “Alexamenos fiel”. Talvez, quem sabe, ou foi o próprio que o escreveu ou alguém dos colegas impressionado pela fé deste pajem.
Esta era a vivência dos primeiros cristãos; arriscavam as vidas na defesa da sua fé! Vivia-se aqui ainda o período do primeiro amor por Cristo Jesus.

d) Giuseppe Verdi (1813-1901)
Todas estas variantes para louvar Deus, de uma forma velada, fazem-nos recordar alguns acontecimentos de meados do século XIX, relacionados com as óperas deste grande compositor italiano. Certa vez, uma noite, um amigo entrega-lhe um libreto para que o musique. Este, versava o tema do cativeiro do povo de Israel em Babilónia sob o reinado de Nabucodonosor. Verdi leu-o. À medida que o ia lendo, deixava transparecer, através da música, a expressão deste povo em cativeiro.
Nesta época, curiosamente, a Itália, a exemplo de Israel, no passado, estava a ser oprimida pela Áustria! Ardia-lhe no coração a ânsia da libertação da sua própria pátria! A música, como um clarim, dava o toque do ânimo e força a um povo agrilhoado pela opressão do estrangeiro.
Assim, a ópera Nabuco, obra deste formidável compositor, triunfa no Scala e “os sentimentos nacionais que haviam explodido no Nabuco, com ardor expontâneo, eram explicitamente lisonjeados na escolha do tema. O coro do Nabuco obtinha aqui uma réplica pontual no caso dos Cruzados Lombardos, que, torturados pela sede do deserto palestiniano, sonham com os verdes prados e as doces colinas da sua terra natal”.
Ora, o que é que acontecia com os que iam à ópera para aplaudirem a ópera Nabuco? O que ali acontecia era muito simples! No fim da ópera, esta era aplaudida de pé, assim como eram dadas grandes vivas ao seu autor – VERDI. Mas quem é que estes, na realidade aplaudia? O Compositor? Claro, em certa medida!

Mas havia outra realidade escondida, camuflada entre os seus entusiastas VIVAS e aplausos! A polícia austríaca ali existente, fiscalizava todos os movimentos suspeitos! A assistência, ao se levantar, ao aplaudir o compositor e a respectiva obra, aplaudia, na realidade, outro Verdi! Um VERDI político! Ao aclamarem: - VIVA VERDI -, na realidade eles, com a mesma intensidade patriótica, saudavam o seu soberano no exílio! Vejamos como:

Assim, o povo italiano ao saudar a obra e o seu grande e talentoso compatriota, mesmo sob os olhares da polícia política, estavam a dar vivas, veladamente, ao seu soberano exilado: V (ittorio) E (manuele) R (e) d’ I (tália).

Bibliográfica:Michael Green, op. cit., p. 23
Citado por Edward Gibbon, Declínio e Queda do Império Romano, Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, 1995, Vol. I, p. 208
A . Hamman, A Vida Quotidiana dos Primeiros Cristãos (95-197), Lisboa, Ed. Livros do Brasil, s.d., p. 13
Idem, p. 65
Cirilo Folch Gomes, OSB, Antologia dos Santos Padres, 3ª ed. Lisboa, Ed. Paulinas, 1985, p. 92
Michael Green, op. cit., p. 348, nota 53
Oscar Cullmann, Christologie du Nouveau Testament, 3ª ed., Neuchatel, Ed. Delachaux & Niestlé, 1968, p. 212
Georges Stéveny, A la Découverte du Christ, Paris, Ed.Vie et Santé, 1991, p. 195
Idem, p. 176
Oscar Cullmann, op. cit.., pp. 207,208
Cf. Visão de conjunto Michael Green, op. cit., p. 403,404, nota, 108
Cf. Oscar Cullmann, op. cit., pp. 52,55
Michael Green, op. cit., p. 209
Henri Thomas e Dana Lee Thomas, Vidas de Grandes Compositores, Lisboa, Ed. Livros do Brasil,, Colecção Vidas Célebres, nº 2, s.d., p. 225
Massimo Mila “VERDI, Giuseppe”, in Dicionário Biográfico Universal, Lisboa, Ed. Artis Bompiani, 1982, Vol. V, p. 3689

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

OS RUDIMENTOS DA IGREJA PAPAL

Imperador Trajano.
A Igreja conheceu a opressão da autoridade imperial e, como consequência, podemos, na sua História, diferenciar algumas das suas fases ao longo dos séculos II e III, a saber:
1- 90 a 140 d.C. – Período dos Pais Apostólicos. Perseguições sob o imperador Trajano (98-117).
2- 140 a 180 – Período dos primeiros Apologetas (Justino e os judeus gnósticos). Perseguição sob o imperador Marco Aurélio (161-180).
3- 180 a 220 – Período contra o gnosticismo. Reacção herética: Montanismo, Tertuliano. Reacção Ortodoxa: Ireneu. Escola catequética. Clemente de Alexandria. Perseguições sob o imperador Septímio Severo (193-211).
4- 220 a 270 – Período de reforço da autoridade clerical. Hipólito, Orígenes, Cipriano. Controvérsia antitrinitária. Perseguições sob o imperador Décio (249-251).
5- 270 a 300 – Período de paz
6- 300 a 313 – Perseguição sob Diocleciano (284-305).

A passagem do século I foi de capital importância para a história cristã. Todos os apóstolos tinham desaparecido. Aqui e ali começa a surgir uma organização flexível e progressiva. Em princípios do século II, a Igreja primitiva parecia já dividir-se em pequenos núcleos instáveis (seitas); estes, muitas vezes em luta uns contra os outros e, aparentemente, condenados a rapidamente desaparecer.
O desenvolvimento do episcopado foi, de certa forma, uma resposta a esta ameaça!
No entanto, na passagem “da organização colegial à responsabilidade episcopal, houve um tempo de flutuação, com hesitações e resistências. Certas comunidades como, Jerusalém ou Alexandria possuem, desde o começo do cristianismo, o seu bispo”. Ainda, no dizer do mesmo autor, “em Roma a fusão entre os sucessores de Pedro e o conselho dos presbíteros da cidade, não parece que se tenha efectuado sem atritos. No tempo de Clemente, a igreja romana é dirigida ainda por um conselho presbiterial, com um presidente no topo”.
É evidente que este autor, na qualidade de sacerdote, irá usar este argumento para qualificar a situação da igreja de Roma em relação às demais, ao referir que não tem um bispo, como as demais, mas sim um - “presidente”- portanto, um bispo dos bispos, ou algo parecido!
Mas, repare o leitor que este Clemente, segundo o cômputo da Igreja, foi o terceiro sucessor de Simão Barjonas, na Sé de Roma de 88 a 97. Este escreveu uma carta à Igreja de Corinto, e perante a qual certos autores afirmam que: “ao fazê-lo (Clemente) atesta a consciência do seu primado universal como sucessor de Pedro”. Mas, vejamos bem o conteúdo da dita carta para que não tiremos conclusões tão apressadas! Ao escrevê-la, em que termos o fez? Em que nome escreveu? Vejamos: “ A Igreja de Deus que peregrina em Roma, à Igreja de Deus que peregrina em Corinto (…). Clemente escreveu realmente à Igreja de Corinto, mas não em seu nome pessoal, mas em nome da Igreja de Roma! Não deixa transparecer nenhuma ideia da autoridade papal que, mais tarde, o papado reivindica e assume para si!
A discórdia entre o bispo de Roma e os cristãos da Ásia radicados em Roma, acentua-se porque estes, fiéis à tradição da sua igreja original, continuavam a celebrar a festa da Páscoa no dia próprio para o efeito – 14 de Nisan – isto é, sempre na noite de Sexta-feira para Sábado e não “na noite de sábado para o domingo, como os outros fiéis da cidade”. Este diferendo doutrinário aconteceu no tempo do Papa Victor I (189-199), o qual contribuirá para romper “com todas as Igrejas da Ásia menor, porque recusavam submeter-se à sua decisão quanto à contenda sobre a festa da Páscoa”.
Tudo apontava para que igreja situada no coração do império, gradualmente, reivindicasse para si a primazia de entre o resto da cristandade, sob a estranha nomenclatura de: sucessor de Pedro! O bispo de Roma já não se sentia um com os demais, como um par inter pares (par entre pares), mas agora como um primus inter pares (o primeiro entre pares); não muito tempo depois, o Papa Calisto I (218-223) irá invocar “pela primeira vez a autoridade de Pedro”.
A Igreja será alvo de ataques vindos do exterior pela perseguição, como também pela polémica interna. Mas, pelos seus mártires e apologetas ela sai vencedora. É atacada, sacudida pelas heresias motivadas por este ou aquele ponto doutrinário. Mas, tal como nas perseguições, ela também sai vencedora de todos os ventos de doutrina contrários.
A Igreja de Roma era a mais importante e populosa do império, pois segundo uma estimativa “os cristãos de Roma eram cerca de cinquenta mil”. A partir de Constantino tudo irá ser diferente, este imperador constituirá um verdadeiro marco de viragem na História da Igreja de Roma.
Batalha de Maxêncio contra
Constantino.
Na véspera da batalha, contra Maxêncio, na Ponte Milvio, Constantino teve uma visão. Viu uma cruz, a qual, por sua vez, era acompanhada de uma ordem: “Serás vencedor por este sinal”, mandou gravar o símbolo – Ièsous Christòs (Jesus Cristo) – no escudo dos seus soldados. Depois, seguiu-se um período de tolerância para os cristãos, culminado pelo famoso Édito de Milão, em 313. Este édito foi seguido da promoção do Evangelho a Religião do Estado! Nem mais nem menos! E com que resultado? Aquele que a História da Igreja, tristemente, o demonstrará “havia de vir a fundar, um dia, a ditadura do cristianismo e a teocracia papal”.
A gratidão da Igreja exaltou as virtudes e desculpou as fraquezas daquele que irá, tal como o referimos, instalar o cristianismo no trono do mundo romano; a partir de agora, “a salvação da gente comum era comprada por baixo preço; a ser verdade que, num só ano, doze mil homens receberam o baptismo em Roma, para além de um número correspondente de mulheres e crianças; uma veste branca, mais vinte moedas de ouro, haviam sido prometidas pelo imperador a todos os convertidos”.
O cristianismo, na grande cidade, estava a ganhar cada vez mais terreno. Era mais do que tempo para se transitar da catacumba, da opressão e vexame públicos, para uma fase mais confortável e, de preferência, em consonância com o Poder instituído. Quem diria?!
Como fazer para alcançar os bárbaros? Seria necessário uma grande evangelização em larga escala ou, para que tal fosse possível, bastaria invocar o nome do imperador, enfim, um dos nossos, para que os resultados estivessem assegurados,!
Eis como a História o refere: “A guerra e o comércio tinham propagado o conhecimento do Evangelho para lá das fronteiras das províncias romanas; e os bárbaros, que haviam desdenhado uma seita humilde e proscrita, aprenderam rapidamente a estimar uma religião que fora tão recentemente adoptada pelo maior monarca e pela nação mais civilizada do globo”. Atardemo-nos um pouquinho nesta expressão - seita! Assim era visto e chamado, este embrião de Igreja, por ser, segundo parece, diferente da religião oficial - paganismo - com todo o seu cortejo idolátrico! Este, se queria singrar na sua nova posição teria, obviamente, que ser diferente de si mesmo, do que foi até então, caso contrário continuava oposição! Gradualmente vai voltando as costas ao que sempre foi, aos princípios que o regeram, para começar a assimilar tudo e todos, para que este “tudo” e “todos” se sentissem bem no seu seio! Não é o exterior, aqueles que chegam, que mudam, que aprendem a conhecer um novo caminho, uma nova directiva para as suas vidas! Mas, por estranho que possa parecer, quem muda é o interior - a Igreja em si mesma!
Um milagre inesperado acontece: a Igreja rudimentar, tida por Seita, passa a religião oficial! E o que é que guardou da pureza do passado, isto é, tudo o quanto estava de harmonia e de acordo com o imutável evangelho? Quanto a nós: muito pouco! Diremos que nela encontramos uma doutrina para cada gosto uma verdadeira sopa de cristianismo e paganismo; não se sabendo onde termina um e começa o outro! Mais abaixo tentaremos responder a esta questão.
Nesta união, devido ao famoso édito de Milão, resultaram ganhos e perdas para a Igreja. Vejamos alguns aspectos de ambos os lados:

• Ganhos:
1- De minoria perseguida, a Igreja cristã tornou-se, subitamente, toda-poderosa.
2- O culto, era mais político do que religioso.
3- Para assegurar a supremacia era necessário chamar a si as forças omnipotentes de que só o imperador era detentor - braço secular - uso da força para fazer-se obedecer.

• Perdas:
1- Apoiada pelo Estado, a Igreja tornar-se-á, com extrema rapidez, intolerante e fanática, iniciando uma série de perseguições, imagine-se!
2- O exílio já não bastava; contra os dissidentes, mesmo cristãos, passar-se-á a usar a tortura e os suplícios. Sob o reinado de Honório (395-423), tanto a heresia como os casos de cisma eram assimilados ao crime.
3- A adesão do Estado terá de ser paga pela Igreja; o preço a pagar será a sua total submissão a este.
4- A Igreja vai-se acostumando a servir-se do - braço secular - para obter conversões!
5- Afim de aumentar o número dos seus adeptos, o cristianismo irá, a partir de agora, ganhar a confiança dos reis bárbaros e da sua corte; uma vez conseguida a adesão do chefe… o resto virá!

Portanto, se o Estado romano faz um negócio algo duvidoso, também a Igreja! Ainda que arrecadando grandes lucros materiais, veio a sofrer terríveis perdas espirituais.
Inútil será dizer que os piedosos e humildes presbíteros dos primeiros tempos, não só não podiam possuir, como teriam, provavelmente, recusado o poder e a pompa que rodeava a tiara do pontífice romano! E porquê? A resposta já acima a demos! Caso haja qualquer dúvida, bastará recordar, uma vez mais, o diálogo entre Jesus e Pilatos, pouco antes da Sua crucifixão!
Abramos um parêntesis: Em resposta a Pilatos, Jesus lhe diz a certa altura: “«O meu reino não é deste mundo». Disse-Lhe Pilatos: «Logo, tu és rei?» Jesus retorquiu: «Tu o dizes! Eu sou Rei! Para isso nasci e para isto vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz».” – S. João 18:36-37
Por outras palavras, Jesus diz a Pilatos que é rei, visto possuir um reino! Mas, diz-lhe que: “o seu reino não é daqui debaixo, não tem a mesma origem que os reinos deste mundo”! Enfim, não era da mesma qualidade que o dele - terreno e efémero! O de Jesus estava assente noutros valores; este era composto por outro tipo de cidadãos! Sabe quais, prezado leitor? Os que ouvem a Sua voz, os que são da Verdade! Não os que seguem posições honoríficas e que criam desigualdades entre o seu semelhante.
Perante este contexto, repetimos, como é que a Sua Igreja, aquela que diz ser a Sua continuidade e composta por aqueles que a seguem e que afirmam ser Seus verdadeiros seguidores o fariam? No entanto, ainda hoje fazem, curiosamente, em Seu nome! Pactuar com este mundo, com o Poder que lhe é inerente, em detrimento da Verdade! Como compreender tal postura? Nada encaixa com nada, não é verdade?
Será que ainda não estamos convencidos? Por que não recordar as tentações do Senhor Jesus no deserto, o exemplo dos exemplos?

As Tentações de Jesus:
O que é que aqui estava em causa? Nada mais do que um teste! Saber até que ponto o 2º Adão – Cristo Jesus – resistiria! Seria ele mais forte? Seria igual ou mais fraco do que o 1º Adão?! Três tentações para O testar de vez! Tentar ver o quanto Este enviado do céu vale! Assim, surge a primeira questão: Ele veio como homem ou como Deus a esta terra? Não como Deus, certamente! Porquê? Segundo, uma vez mais, o método infalível de conhecer a Bíblia, para responder a esta questão, iremos - consultá-la e compará-la!
O Novo Testamento nos diz que: “Ninguém diga, quando for tentado: «É Deus que me tenta». Deus não pode ser tentado pelo mal e não tenta ninguém” – Tiago 1:13. Ou ainda “(…) Ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, excepto no pecado” – Hebreus 4:15.
Como primeira conclusão, “se Deus não pode ser tentado” e “Ele em tudo foi provado”, isto quer dizer que, embora sendo Deus, (cf. Filipenses 2:6-8) veio a este mundo como um simples mortal, “(…) em carne semelhante à do pecado e para expiação do pecado condenou na carne o pecado” – Romanos 8:3.
Em segundo lugar, se assim não fosse, como é que Ele poderia ser, verdadeiramente, o meu e o seu representante, prezado leitor? Se estivesse imune, como nos iria compreender? Iremos realçar, muito sumariamente, neste contexto, alguns breves aspectos da teologia Lucaniana, sob influência Paulina, para melhor destacarmos as desvantagens de Jesus (2º Adão), em relação ao primeiro homem à face da terra, o (1º Adão).

• contexto: Segundo o esquema apresentado por este evangelho, no baptismo de Jesus, Deus reitera a Sua filiação, ao dizer: “Tu és o Meu Filho muito amado (…)” – S. Lucas 3:22. Na genealogia que apresenta refere que: 1- “Jesus (…) sendo filho, como se supunha, de José (…)” – v. 23; 2- Ao descrever esta mesma genealogia, por ordem decrescente, chega ao tal “princípio”, e acrescenta: “(…) Enós é filho de Set; Sete filho de Adão; e Adão de Deus” – v. 38.

Portanto, S. Lucas coloca-nos perante dois Adãos! Quanto ao primeiro, segundo o v. 38, veio directamente imaculado das mãos do seu Criador “e Adão de Deus”; Quanto ao segundo: por adopção, era “ como se supunha filho de José”! Portanto, com contactos humanos, sob influência humana – placenta de Maria - o que não foi o caso do 1º Adão! Sendo assim, estamos aptos para recordarmos que, à partida, este 2º Adão tem algumas desvantagens em relação ao 1º Adão – influência humana, como já o dissemos, e vivência pecadora – “(…) não há nenhum justo, nem um sequer” – Romanos 3:10; ou ainda “Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” – Romanos 3.23.
Portanto, não vemos razão, à luz das Escrituras para isentar Maria, apesar de nos merecer todo o respeito, visto que – “todos pecaram (…)”, diz o texto bíblico! Mas, mais abaixo abordaremos esta problemática.

1ª Tentação: Esta articula-se a dois níveis. 1 - Para realçar a humanidade de Jesus, o texto refere que o Filho de Deus teve - fome! 2- Para recordar, por outro lado, que ali estava alguém divino: a tentação passa-se ao nível de Deus, não do homem! “Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pão” 4:3.
Este “Se”! Qual a razão para assim começar a tentação? Não esqueçamos que, nos versículos anteriores à tentação, como vimos, S. Lucas refere o baptismo de Jesus, portanto, antes do relato da tentação!
Se até ali satanás tinha qualquer dúvida acerca de quem era Jesus, ali, no baptismo, esta tinha sido esclarecida pela afirmação incontestável “Tu és o Meu Filho muito amado (…)” – S. Lucas 3:22. Assim, como podemos ver, não era a dúvida que o movia! A tentação articulava-se na tentativa de O fazer sair da condição de Deus para homem e vice-versa!
Por um lado, o Homem fazer apelo ao que existia de divino em Si mesmo – “transformar pedras em pão”; por outro, ao Divino – duvidando se Ele era realmente quem tinha sido proclamado! Eis a ocasião suprema para o demonstrar! Caso cedesse, não era Deus, mas uma marioneta que cedia aos caprichos desta entidade!
Com nenhum de nós Satanás perde o seu tempo com este tipo de tentações, não é verdade?! E porquê? Porque ele sabe, que não existe em nós, NADA, nesta área para o qual este possa apelar – qualquer poder, seja para o que for! Portanto, esta 1ª tentação é para que Jesus escape do humano para o divino “lhe sugerindo milagres estranhos à sua missão específica de Filho”. Por outro lado faz apelo ao “deus ventre” e ao “orgulho” - precisamente onde Adão e Eva caíram (cf. Génesis 3:3-7)!
Portanto, esta 1ª tentação é o inverso da de Adão e Eva. Estes foram tentados através do apetite, para saírem da condição de seres criados, logo, dependentes, e quererem ser deuses! Enquanto que a de Jesus, ao “existir na condição de Deus” – Filipenses 2:6 – visava espicaçá-lo ao uso do Seu poder, recordando-Lhe, por outras palavras: “Para quê sofreres a fome, se nada Te é vedado? Prova-me quem Tu és”!
Que faríamos nós, se tivéssemos tal poder em nós? Por exemplo: Quando somos cinturão negro em artes marciais, e, sem saberem na rua à noite, somos assaltados ou que nos interceptam, gozando connosco. Como faremos? Consentimos que gozem connosco ou, de imediato, usaremos os nossos “poderes”?
Embora noutro contexto, mas a ideia é a mesma! Convenhamos que teríamos muita dificuldade em resistir a este golpe montado só para ver se, na qualidade de mestres em artes marciais, manteríamos a calma, na adversidade! Por aqui poderemos, palidamente, compreender o que estava em causa, em Jesus! Se o escutasse, Jesus passaria da condição de Divina à humana, muito embora, paradoxalmente, a tenha consigo desde Maria! Ser sem ser – que prova, que drama!

2ª Tentação: “O diabo mostrou-Lhe, num instante todos os reinos do universo e disse-Lhe: «Dar-Te-ei todo este poderio e a sua glória» (…)” - 4:5,6. Mas, não é, precisamente, a este domínio, a esta glória que Jesus está destinado? Claro! Mas “Satanás as propõe segundo a condição que Ele consinta recebê-las de um outro deus diferente de Deus! Deus O conduz à glória pela cruz; Satanás Lha promete sem a cruz, assim como sem Deus”.
Esta 2ª tentação ataca-O no plano social e político. Não temos nós esta mesma vertente? Queremos cada vez mais, apesar de tudo isto, espiritualmente, a nada nos levar nem elevar!

3ª Tentação: “Conduziu-O a Jerusalém, colocou-O sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe: « se és o Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo” – v.9. Que tentação. No Templo! Onde todos O poderiam ver! Seria, finalmente, entronizado como o grande líder! Alguém que desafiava as leis da gravidade. Na hora do culto, descer do céu sustido pelos anjos, quem iria duvidar de que Ele, afinal era o Messias aguardado? Esta 3ª tentação “desenrola-se sob o plano espiritual”. Líderes, Gurus – enfim, tudo o que seja Poder! Tudo o que faça ao homem possuir o que sempre desejou – a divindade! Mas como ser, sem estar plenamente n’Aquele que disse ser o SER?

Portanto, Cristo, na Sua globalidade humana, foi tentado em todas as vertentes:
1- Escape do humano para o divino;
2- No plano social e político;
3- No plano espiritual.

Quanto a nós, esperamos ter resistido à tentação de não ter enveredado por complicadas lucubrações teológicas. O que desejámos realçar, ao fazer esta incursão no evangelho, é que em Cristo nunca existiu o menor desvio à vontade do Pai. Sempre se manteve igual a Si mesmo, à Sua solene missão – Resgatar o ser humano!
E o que foi que aconteceu com à confissão religiosa - dita Sua continuidade? Esta sempre quis o céu nesta terra! A glória e a ostentação terrenas - um soberano entre soberanos e, por vezes, muito superior! E quanto aos valores espirituais? E a Verdade, da qual ficou, diz, depositária fiel? Onde está? Nas brumas da memória, entregue ao esquecimento e ao sabor da vontade humana, para muita pena nossa! Fechemos o parêntesis.

Bibliografia:Edward Gibbon, op. cit., Vol. II, p. 503
Ibidem
Idem, p. 504
Ibidem
Ibidem
A. Hamman, op. cit., p.131
Idem, p.134
Cirilo Folch Gomes,OSB, op. cit., p.17
Clemente de Roma, 1ª Epístola aos Coríntios 1
A. Hamman, op. cit., p. 134
Geoffrey Barraclough, op. cit., p. 19
Ibidem
Cf. J. M. Nicole, op. cit., pp. 40,41
Edward Gibbon, op. cit., Vol. I, p. 210
J. M. Nicole, op. cit., p. 44; Cf. Ferdinand Lot, Fim do Mundo Antigo e o Princípio da Idade Média, Lisboa, Ed.70, 1968, p. 41
Jean Louis Schonberg, op. cit., p. 22
Edward Gibbon, op. cit., Vol. I, p. 323
Ibidem
Idem, p. 363, nota 1- “ A palavra grega – Pêgê – significava uma fonte; e os vizinhos rurais que visitavam a mesma fonte recebiam daí a designação comum de pagus e pagani. Assim, pagão e rural tornaram-se, as palavras, praticamente sinónimos. O extraordinário aumento da ordem militar trouxe a necessidade de um termo correlativo; e todas as pessoas que não se encontravam alistadas ao serviço do príncipe foram estigmatizadas com o desdenhoso epíteto de pagãos. Os cristãos eram os soldados de Cristo; os seus adversários, que recusavam o sacramento ou o juramento militar do baptismo, podiam merecer a designação metafórica de pagãos. Esta censura popular foi introduzida a partir do reinado de Valentiniano (365 d.C.), nas leis imperiais e nos escritos teológicos. O cristianismo difundiu-se, gradualmente, pelas cidades do império: a velha religião retirava-se e definhava nas aldeias obscuras; o título de pagãos foi aplicado a todos os idólatras e politeístas do velho e do novo mundo. Os cristãos latinos atribuíram-no, sem escrúpulos, aos seus inimigos mortais, os maometanos” – Cf. João J. Alves Dias e A.H. de Oliveira Marques, Do Pagus ao Paio (Notas sobre a Administração Romana em Portugal, Braga, Separata da Revista Bracara Augusta, Vol. XXXIV, Fasc. 78(91), Julho-Dezembro de 1980, pp. 3-6
Idem, pp. 53-57
André Trocmé, Jesus Cristo e a Revolução não-Violenta, Petrópolis, Editorial Vozes, 1973, p. 200, nota 8
Oscar Culmann, op. cit., p. 240
Hebert Roux, L’Evangile du Royaume, 2ª ed. Genève, Ed. Labor & Fides, 1956, p. 40
Georges Stéveny, op. cit., p. 95

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

ROMA VERSUS CONSTANTINOPLA

Conatantinopla actual Istambul
Se os cristãos tinham sido favorecidos entre 313 a 323, agora, Constantino devia ao deus das vitórias uma prova inequívoca do seu reconhecimento. Este irá demonstrá-lo através de um acto histórico, muito estranho! Irá criar uma segunda Roma, a saber: Constantinopla, no oriente!
O que levou o imperador a proceder assim? Será que queria formar uma nova cidade totalmente cristã, enquanto que a de Roma sofria de um incurável paganismo? Para o historiador “a fundação de Constantinopla é um mistério político”. Mais abaixo abordaremos alguns aspectos que esclarecem, a nosso ver, este acto incompreensível para a mente humana, enfim, um verdadeiro mistério! Mas não para a profecia bíblica!
César Augusto
Poncius Maximus
Para já, continuemos a seguir a trajectória do bispo de Roma. Assim, mercê desta reviravolta inesperada, Roma cessa de ser o bastião do paganismo, na pessoa do imperador, para se tornar, quem diria, o quartel-general do cristianismo! Como a História o revela claramente, o bispo de Roma aumenta, dia após dia, a sua importância e tomará, progressivamente, o lugar que o imperador ocupara! A “Igreja de Roma veio a apoderar-se insidiosamente do lugar antes ocupado pelo Império Romano. Na realidade, esta perpetuou-se nela. O Papa – Pontifex Maximus – veio a suceder ao César. O Papa passa a ser imperador”. Na ausência do imperador, o bispo de Roma, apodera-se também do título pagão que outrora pertenceu ao monarca romano – Sumo Pontífice, o fazedor de pontes), ligando a terra ao céu!
Se o bispo de Roma passa a ocupar o lugar do imperador, o que acontecerá, a partir desta mudança imperial, ao seu congénere de Constantinopla, cidade da nova residência do imperador? O raciocínio é elementar e, por isso, fácil! Se a Igreja irmã, a de Roma, cresceu à sombra da influência do soberano, então, agora em relação a esta segunda opção do imperador, então, certamente que acontecerá a mesma coisa! Falando clara e objectivamente, qual será, a partir de agora, a posição, entre o clero, nomeadamente, a do bispo de Constantinopla, cidade na qual vive agora o imperador? Poderá, porventura, o bispo desta manter a mesma dignidade do passado recente, ou seja, inferior ao seu colega de Roma? A resposta não se fez esperar! Assim, “O segundo concílio ecuménico de Constantinopla, em 381, decreta que o bispo desta cidade detém o primeiro lugar depois do de Roma, «porque Constantinopla é a Nova Roma», Cânone 3”.
A polémica começa a instalar-se; quem gosta de perder posição? Nem a Igreja! O bispo de Roma tudo irá fazer para chamar a si a primazia de Pedro. A rivalidade entre Roma e Bizâncio, entre a velha e a nova Roma, como acima já o referimos, fará com que “a partir do concílio de 381 em Constantinopla, o antagonismo resulta em Cânones sucessivos. O Cânone terceiro declara que Constantinopla, na qualidade de segunda Roma terá direito às honras devidas à sua posição e que o bispo de Bizâncio terá autoridade sobre Antioquia e Jerusalém, imediatamente a seguir ao bispo de Roma”. O objectivo, repetimos, era bastante claro, isto é, dar a Constantinopla uma posição inatacável, no Oriente. Depois, dá-se um passo em frente, até que, no concílio ecuménico de Calcedónia, em 451, na sua 15ª sessão, é dito que: “por diligência do imperador, foi promulgado o Cânone 28 que concedia a Constantinopla, como uma nova Roma, todas as prerrogativas da antiga”. Nesta altura o Papa era Leão I, o Grande (440-461) e, de modo algum, aceitou esta decisão Conciliar, como facilmente se compreenderá, não é verdade? Este, bispo de Roma, para contornar esta perda de poderes em favor do seu congénere, bispo de Constantinopla, irá falsificar “o 6º Cânone de Niceia ao adicionar as palavras: «Roma sempre teve a primazia»”. Apesar de tudo isto, os ventos da História iriam soprar e fazer balançar os pratos da balança a favor de Roma, ao dar-se a derrocada do império do oriente.

A Visão do Profeta
Mas, dissemos nós acima, que a escolha de Constantinopla para – segunda Roma – era, segundo os historiadores - um mistério político! Quanto a nós, gostaríamos de apresentar uma mera sugestão de resolução do problema, que se encontra, segundo cremos, nas Escrituras e na História, vejamos:
Quando S. Paulo escreve aos crentes de Tessalónica acerca da segunda vinda do Senhor Jesus e do quanto deverá acontecer antes de tal acontecimento - sinal precursor - ele escreveu, acerca do assunto, estes versículos estranhos: “ Que ninguém, de modo algum, vos engane, antes, há-de vir a apostasia e há-de manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição, o adversário, aquele que se levanta contra tudo, o que leva o nome de Deus ou o que se adora, a ponto de tomar lugar no templo de Deus e de se apresentar como se fosse Deus. (…). Agora, vós sabeis perfeitamente o que o detém, de modo que Ele só se manifestará a seu tempo (…) esperando apenas o desaparecimento daquele que o impede” – II Tessalonicenses 2:3-7.
Colocaremos em destaque, quanto a nós, os pontos mais relevantes destas estranhas revelações:
1- O apóstolo fala que, antes deste glorioso acontecimento, virá:
a) A apostasia;
b) O Filho da perdição;
c) O Adversário;
d) Leva o nome de Deus;
e) Toma o lugar no templo de Deus;
f) Apresenta-se como Deus;

2- De seguida, acrescenta:
a) Sabeis o que o detém;
b) Se manifestará a seu tempo;
c) Há um que agora resiste
d) Até que do meio seja tirado.

Que personagem ou personagens poderão preencher estes requisitos? De que tempo histórico? Do passado, do presente ou do futuro? A personagem em questão não é, pensamos, a figura histórica de Antíoco IV Epifânio, como acima o demonstrámos. No entanto, o nosso autor diz: “o conjunto só pode ter a ver com a figura de Antíoco Epifânio que derrotou exércitos humanos (…). Revoltou-se contra o próprio Príncipe dos exércitos, isto é, contra o próprio Deus. Nem devemos esquecer que se autoproclamou de Epifânes ou Epifânio, que significa aparição de Deus. Ele mesmo se autodivinizou”.
É verdade que o contexto a que pertence a citação supra, é diferente, mas o conteúdo e sentido espiritual é exactamente o mesmo! Como identificar este personagem com a segunda parte dos pontos mais relevantes acima separados, a saber: 1- Manifestar-se-á a seu tempo; 2- Espera apenas o desaparecimento daquele que o detém, que o impede? Nem com muito, mas mesmo muito boa vontade o poderemos identificar com esta personagem histórica, da qual tanto gosta o nosso autor!

A História
Mais adiante falaremos acerca das vicissitudes pelas quais passou a Igreja, ao longo da História, sob a égide do Dragão – Apocalipse 12. Por agora, limitemo-nos a abordar a relação entre o bispo de Roma e o imperador, numa determinada fase.
Como já o referimos, a Igreja de Roma não estava preparada para a brusca mudança de atitude do governo imperial, que passara da perseguição à tolerância e, mesmo até, a uma certa generosidade. O imperador pela sua posição privilegiada, sempre interferiu nos Concílios da Igreja; estes eram convocados sob a sua protecção e patronado; enfim, estas reuniões para debater certos assuntos, e dos quais nada compreendia, eram feitas à sua imagem!
É interessante analisarmos o desenrolar da História dos Concílios para nos podermos, minimamente, aperceber e compreender o desenvolvimento e apogeu do bispo de Roma. No contexto destas relações entre este último e o imperador, podemos ler o seguinte comentário: “o primeiro obstáculo ao desenvolvimento papal, dadas as novas condições administrativas era, pois, a atitude do governo imperial para com a Igreja, atitude que persistiu mesmo depois de o imperador haver abandonado o título pagão de Pontifex Maximus, em 397. A teocracia imperial atingiu o seu apogeu com Justiniano (527-565). As medidas violentas são conhecidas: a brutal deposição de Silvério (536-537), que morreu numa colónia penitenciária; a prisão de Virgílo (537-555); a elevação forçada do indigno Pelágio I (556-561) ao trono pontifício”. Ou ainda: “o tempo de Pelágio I e até 741, a dependência do papado em relação ao Estado exprime-se pela comunicação ao imperador de Constantinopla, do nome do Papa eleito, acompanhada de uma quantia considerável, equivalente a um tributo”. Será, perante o exposto que não encontramos matéria de facto para enquadrar os acontecimentos nas alíneas destacadas? Vejamos se as personagens encaixam no que acima realçámos do texto de S. Paulo. Recordemo-lo:
a) Um poder que detém e impede = Imperador Romano
b) O detido, impedido de = O bispo de Roma
c) Quando o que detém desaparecer = O poder e influência de Constantinopla devido à ruína “da cristandade oriental e à eliminação dos rivais do bispo de Roma, os patriarcas de Alexandria, Antioquia, Jerusalém e a Igreja de Cartago que eclipsara Roma”.

Moeda com o nome de Constantino - rara.
Assim, perante o exposto, pensamos que, afinal, o abandono de Roma para Constantinopla pelo imperador, poderá ser, em termos políticos e afins, um verdadeiro “mistério”, mas em termos religiosos, como nos pudemos aperceber, tudo parece bastante claro e evidente! Tudo constituiu uma espécie de porta que se abriu para que, tal como o revelam as Escrituras, quando “desaparecer aquele que o detém”, então o que “toma o lugar no templo de Deus (Igreja) e se apresenta como se fosse Deus” possa, finalmente, surgir em toda a sua força e esplendor, até certa altura, isto é, - “ao tempo da segunda vinda de Jesus” - acontecimento para o qual aponta a continuação do texto bíblico em questão!
Estaremos a ser, prezado amigo, biblistas-fundamentalistas? Estaremos a fazer um uso excessivo e abusivo dos textos, manipulando-os a nosso contento para que estes digam o que queremos? Continuamos a pensar que não! Muito embora, certamente que o nosso autor, se nos ler, dirá que sim!
Ferdinand Lot, op. cit., p. 44

Bibliografia:
Idem, p. 58
Idem, p. 268
Jean Louis Schonberg, op. cit., p. 44
Idem, p. 66
J. M. Nicole, op. cit., pp. 63,64
Joaquim Carreira das Neves, OFM, op. cit, p. 132
Geoffrey Barraclough, Os Papas na Idade Média, Lisboa, Ed. Verbo, 1972, p. 25
Idem, p. 34
Idem, p. 35

domingo, 31 de outubro de 2010

A DOAÇÃO DE CONSTANTINO À IGREJA ROMANA

Carlos Martel vencendo os árabes em Poitiers
Na época de Carlos Martelo e de Pepino, o rei Lombardo ameaçava a liberdade de Roma. Nesta altura, o papado não possuía nenhuma terra, nenhum território além do palácio episcopal de Latrão.
Querendo ter poder temporal e exercer a sua influência, para tal era necessário equiparar-se a um monarca temporal! Embora embrionário, o sistema papal, sempre desejou ter este mesmo protagonismo temporal. Querendo satisfazer esta ambição e ter um papel no campo da política, era necessário, tal como qualquer soberano – Poder! Enfim possuir um domínio sobre terras, bens e pessoas!
A ocasião não se fará tardar! Astolfo, novo rei Lombardo põe termo ao domínio Bizantino na Itália central ao subjugar e tomar o Exarcado de Ravena, em 751. O pontífice romano ao aperceber-se da impotente ajuda do imperador, ausente em Constantinopla, e para fazer face a esta ameaça, volta-se para os Francos – França.
Nesta altura, exercia o seu pontificado em Roma o Papa Estêvão II (752-757). Este dirige-se a França e ali, acolhido favoravelmente no “Mosteiro de S. Dinis, colocou o diadema na cabeça do seu benfeitor.” Em troca, o rei dos Francos – Pepino, o Breve – promete ajudá-lo contra a ameaça Lombarda. A aliança entre o Papa e a dinastia Franca fora assim concluída. Devido a duas campanhas militares, em 754 e 756, Pepino obrigou Astolfo a abandonar o Exarcado de Ravena e restituí-lo ao papa.
Neste Exarcado estavam incluídos os territórios de Ravena, Bolonha e Ferrara; quando o reino Lombardo foi dissolvido, o ducado de Espoleta veio engrossar os territórios entregues ao pontífice. Esta superfície territorial compõe a área dos Estados da Igreja.
Agora, a situação do pontífice romano era totalmente diferente, pois “a magnífica doação fora outorgada em plena e absoluta soberania; aos olhos do mundo surgiu, pela primeira vez um bispo cristão investido das prerrogativas de um príncipe temporal: nomeação de magistrados, o exercício da justiça, a cobrança de impostos e a riqueza do palácio de Ravena”.
O leitor certamente se perguntará por que é que o rei de França doou tudo isto ao bispo de Roma, não é verdade? Será só por que o monarca assim o quis ou poderá ter sido por outra razão? Parece que a unção do rei teve a ver com algumas contrapartidas e cedências da parte do monarca Franco. A coroação e o reconhecimento da monarquia Franca, passava pela ajuda a conceder ao bispo de Roma e a consequente “devolução” dos territórios usurpados pelos Lombardos!
Assinalamos aqui a existência de um documento chamado – Doação de Constantino - documento, supostamente elaborado e entregue pelo imperador Constantino (311-324), ao pontífice Silvestre I (314-335). Este documento foi levado pelo Papa Estêvão II ao soberano Franco para que este conhecesse o quanto tinha sido usurpado ao pontífice e que era necessário reaver! O documento tem o seguinte teor: “(…) E para que a dignidade pontifícia não seja inferior, mas que tenha uma dignidade e glória maiores que as do Império terreno, como possessões de direito da Santa Igreja Romana (…), a cidade de Roma e todas as províncias, distritos e cidades de Itália e do Ocidente”. Foi graças a este documento que o bispo de Roma pôde alcançar o seu propósito - competir e, dentro do possível, superar qualquer monarca!
Quanto a este documento, não se conhece a data da sua elaboração; em todo o caso “investigações recentes sugerem ter sido elaborado, trecho a trecho, em diferentes passos a partir de 754”.
Portanto temos um documento do século VIII e não do IV, como fizeram crer! Esta fraude foi descoberta, devido ao desenvolvimento da disciplina da Diplomática, por “Lorenzo Valla (1407-1457), pai da famosa Declamatio, na qual ficou demonstrado que o imperador Constantino não é o autor do documento no qual se faz doação ao Papa de uma parte do seu império”. Não deixa de ser interessante o comentário feito por um sacerdote acerca deste preciso contexto de doações. Ao comentar alguns aspectos do pontificado de Estêvão II, assim como as doações do monarca Franco ao pontífice romano, acrescenta: “Não era ainda o poder temporal, mas os alicerces estavam lançados”.
Nunca, na anterior História do papado, fora posta a questão do bispo de Roma assumir o poder temporal e governar como um rei territorial! É, no mínimo, de ficar pasmado! Cristo, como acima já o referimos, sempre pautou pela simplicidade, enquanto que os que sucessivamente encabeçam a Sua “continuidade”, estes procedem, ao invés, do exemplo do Seu Senhor!
Que dizer de Simão Barjonas, aquele que, asseguram, está na origem da sucessão pontifícia? Mais adiante teremos oportunidade de falar nisto em detalhe. Como é possível comparar o simples e humilde apóstolo com esta confissão religiosa que se diz sua sucessora? Nada tem de comparável! A exemplo do Mestre, ele pôde dizer a quem dele precisava: “Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda” - Actos 3:6. Apesar destes exemplos tremendamente esclarecedores, o que é que se tem passado ao longo do tempo? Quanto a nós, das duas uma: 1- Ou os, pretensos, sucessores se perverteram totalmente, e a história que o diga! 2- Ou o apóstolo nunca imaginou que iria, um dia, ter sucessores e, ainda por cima, mais poderosos do que qualquer monarca temporal!
Quanto a nós, à luz das Escrituras, não encontramos qualquer explicação nem justificação para a existência de tal sistema religioso, como para a opulência e ostentação em que sempre viveu! À luz da História, estes ditos sucessores do pobre Simão Barjonas, têm um percurso nada recomendável e, na sua grande maioria, nada tiveram de representantes de Deus! O prezado leitor ainda tem dúvidas? Se acha que estamos a ser exagerados, então tenha a bondade e a curiosidade de consultar qualquer livro de História da Igreja e verá quão triste, confuso e tenebroso tem sido o percurso desta confissão religiosa que, paradoxalmente, se considera a mãe da cristandade e que muitos dizem, porque não conhecem bem, ter orgulho a ela pertencer!

Bibliografia:Edward Gibbon, op. cit., Vol. II, p. 221
Cf. Jacques Ellul, Histoire des Institutions – Le Moyen Age, 9ª ed., Paris, Presses Universitaires de France, 1982, Vol. 3, p. 95
Edward Gibbon, op. cit., vol. II, p. 223
José A. G. Cortazar e Ruiz de Aguirre, Historia General de la Alta Edad Media, Madrid, Ed. Mayfe, 1970, p. 177
Geoffrey Barraclough, op. cit., p. 46
Charles- Olivier Carbonell, Historiografia, Lisboa, Ed. Teorema, 1987, pp. 82,83
Heitor Morais da Silva, S.J., op. cit., p. 107

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

AS RAÍZES DO PODER

Ao longo do século X e da primeira metade do século XI intensificou-se a intervenção do poder laico nos assuntos eclesiásticos. No panorama europeu de meados do século XI, a imagem do imperador brilhava com um brilho sem igual. Quanto à Igreja, esta precisava de um homem forte, de alguém que impusesse o que anteriormente se tinha perdido – a ordem!
Onde estava esse homem? Brevemente iria sair do anonimato alguém “de pequena estatura, desajeitado de aparência, voz débil, mas zeloso defensor do absolutismo papal”. Em 1073 a sua eleição impõe-se com tal evidência que um movimento popular o eleva à dignidade pontifícia. Este homem, o monge Hildebrando, ao ser elevado à dignidade papal, toma o nome de Gregório VII (1073-1085). As suas primeiras acções revelam “o seu invencível desejo de unir os dois poderes - Espiritual e Temporal - para reformar a Igreja”.
Gregório VII, para combater a imoralidade reinante no seio do clero, propõe algumas soluções: 1- Imposição do celibato a todo o clero; 2- Acabar com o escândalo da simonia; 3- Insurge-se contra o direito do imperador de nomear dignitários para a Igreja. Tudo isto para que não existissem quaisquer dúvidas acerca de quem mandava na Igreja! Não poderia haver, portanto, para o corpo, que é a cristandade, duas cabeças: o Papa e o imperador!
Para que as águas pudessem ficar separadas com toda a clareza, Gregório VII irá elaborar, como acima já o referimos e nunca é demais repeti-lo, tal é a sua importância, um documento no qual se poderá ver a expressão do seu pensamento a este respeito. O documento chama-se Dictactus Papae.
Certa vez, Gregório VII teve, um diferendo com o imperador Henrique IV da Alemanha (1056-1106). Do conflito o pontífice sai vencedor. E, para reparar o mal causado, o imperador desloca-se ao encontro do papa, a Canossa, na Toscânia! Ali implora, durante três dias, descalço e com vestes de penitente, o perdão papal!
Quão longe estão os tempos da Igreja simples, humilde, perseguida e oprimida. Tudo isto leva-nos a formular uma simples pergunta: o que é que, já nesta altura, restava da Igreja pura assim como da fonte dos ensinos?
Se ainda quisermos clarificar mais o que pretendemos transmitir, bastará recordar a Decisão II de 8 de Novembro de 1557 que realça, sem qualquer margem para dúvidas, a autoridade inquestionável do papa! Esta decisão é acompanhada, por sua vez, com anotações precedidas por um sumário, do qual destacamos:
Artº 1- “O Papa é quase Deus na Terra (…)”.
Artº 4,16- “Ninguém ouse desprezar o poder do papa, porque ele liga, não como homem, mas como Deus”.
Artº 18,20- O Papa ocupa o lugar e desempenha as vezes de Deus (…)”.
Artº 43,9- “Os reis têm como superior Deus, e consequentemente a Igreja e o Romano Pontífice, que está no lugar de Deus na Terra (…)”.
Artº 61,1- “O Romano Pontífice está acima de todo o Principado e Potestade, e diante dele se curvam todos os joelhos no Céu, na Terra e debaixo da Terra”.
O teor desta última referência recorda-nos dois textos: 1- Aplicado a Deus Pai; 2- Aplicado a Deus Filho. Quanto à primeira, encontramo-la no profeta Isaías: “(…) Todo o joelho se dobrará diante de mim (…)” – Isaías 45:23. A segunda, é uma aplicação feita por S. Paulo ao próprio Jesus Cristo, quando assim escreveu aos crentes de Filipos: “Para que ao nome de Jesus, todo o joelho se dobre, nos Céus, na Terra e nos infernos (debaixo da terra)” – Filipenses 2:10.
Como poderá um pobre e triste mortal ousar pensar, quanto mais decretar, que é “igual a Deus”? Prezado leitor, esta pretensão, segundo as Escrituras, nasceu no coração de um anjo – Lúcifer – ser pleno de glória e de luz. Ele disse: “(…) Sentar-me-ei sobre o Monte da assembleia (…) e serei semelhante ao Altíssimo” - Isaías 14:,13,14. Esta mesma reivindicação orgulhosa do ser criado foi passada para o ser humano, no Jardim do Éden, quando disse a Adão e Eva: “(…) e sereis como Deus” – Génesis 3:5.
Da Dictactus Papae à Decisão II, de 8 de Novembro de 1557, passaram-se cerca de cinco séculos e, qual foi a mudança que se operou na sua atitude? Nenhuma! Esta confissão religiosa continuou igual a si mesma, infelizmente!
Para terminarmos, conviria definir os termos que, impropriamente são utilizados pela maioria! Muitos, com orgulho, incompreensivelmente, afirmam pertencer a esta confissão religiosa que, quanto a nós, repetimos, está ao mesmo nível de qualquer outra congénere!
Por que é que esta confissão religiosa se chama Igreja Católica? Qual o porquê deste nome? Somos esclarecidos que a “Igreja era chamada assim no tempo em que só a cidade de Roma possuía uma comunidade cristã”. E qual é o significado da palavra: Católico? Se consultarmos um dicionário veremos que esta palavra quer dizer: universal. Por outras palavras, não existia outra diferente, relacionada com Cristo, além do judaísmo, para a época!
Numa primeira conclusão: nos dias de hoje não tem qualquer sentido ou razão de ser dizer-se, como alguns o fazem, com certo orgulho: Eu sou Católico! Pois, tal como apontámos, nos dias de hoje, tal expressão não significa nada, visto que esta confissão religiosa não é, de modo algum, uma religião universal, única!
Quanto ao termo - Apostólico - no dicionário encontramos a definição de: “o que diz respeito aos apóstolos”. Quanto à palavra - Romana - tal como ela indica, tem a sua origem e fundação em Roma, nada mais!
Portanto: 1- o termo Católico, repetimos não tem qualquer razão de ser, pois não é uma Igreja Universal; 2- Apostólica! Afinal, que doutrina é que segue? Se é para fazer jus ao seu nome, então, de que apóstolos se trata? Os que existiram, pertencem à história, ao passado, além de não vermos em que é que, no presente, estes sejam imitados! 3- Romana, de Roma. Perguntamos: O que é que, em abono da verdade, tem esta a ver com o cristianismo, na sua essência? Esta cidade está relacionada, isso sim, essencialmente, com morte e perseguição! Nada mais do que sangue e morte! Se ainda fosse uma Igreja situada em Jerusalém, ainda compreenderíamos, pois sempre foi ali que tudo começou, não é verdade? Mas, vendo bem, até a escolha do nome – Romana - é infeliz!
À luz do que vimos esta Igreja é como qualquer outra que queira ter um nome parecido, a saber: Igreja Católica Apostólica (Portuguesa), (Italiana), etc. É só tirar a palavra final – Romana – e acrescentar um nome qualquer de uma cidade ou vila, nada mais! Como mudar o status quo adquirido ao longo do tempo? Quem quer abdicar do Poder? Ninguém! E muito menos uma confissão devidamente instalada e, ultimamente, muito consultada, mesmo até por Movimentos religiosos que, no passado recente, nunca ousaríamos cogitar!
No passado, esta confissão religiosa, curiosamente, recorreu às Escrituras, em particular, ao livro do Génesis para dali tirar uma imagem que muito lhe interessava - a dos dois luminares - Génesis 1:16. Estes representavam: “para a Igreja, o luminar maior, o Sol, é o papa; o luminar menor, a lua, o imperador ou o rei. A lua não tem brilho próprio, ela não tem senão o brilho que o sol lhe
dá. Luminar inferior, o imperador é, portanto, o chefe do mundo nocturno face ao diurno governado e simbolizado pelo papa”.
Quando as Escrituras têm algo que possa servir para determinado fim, mesmo desprovido de qualquer contexto, elas são excelentes! Quanto ao resto, é o que a sua triste história nos mostra em páginas manchadas de sangue e de muitas coisas impróprias para uma Igreja! Enfim, um cortejo de misérias!
Que diria o simples e humilde Apóstolo Simão Barjonas se ressuscitasse nos nossos dias? Seria, certamente, inimaginável a sua reacção! Com que estranheza tomaria conhecimento de que tinha legado um império, sem nunca ter dado por isso?! Partiu-se dos ensinos de raiz bíblica – infalíveis - para os de formato meramente humano – falíveis -! Da extrema pobreza para o fausto, o luxo, a licenciosidade! Tão estranho acontecimento! E logo a Igreja, aquela que diz ser a sucessora de Cristo! Quem diria!

Bibliografia:Henri H. Halley,op. cit., pp. 686,687
Geoffrey Barraclough, op. cit., p. 94
Esta ordem é contrária à vontade de Deus, desde a Criação do homem “Não é conveniente que o homem esteja só;” – Génesis 2:18; “Proíbem o casamento (…)” – I Timóteo 4:3. Qual o porquê da vontade de Deus? A razão é, pensamos, “Somente o homem e a mulher juntos é que representam, verdadeiramente, o homem completo”; ou ainda “O celibato passa por ser uma desonra, porque o ser humano jamais poderá realizar, em si mesmo, uma vida completa” - Hans Walter Wolff, op. cit., pp. 120,153
Simonia – compra de um cargo eclesiástico por dinheiro. Recordando o episódio entre S. Pedro e Simão que queria comprar o dom do Espírito Santo, do qual retira o nome – Cf. Actos 8:18-22.
Cf. Geoffrey Barraclough, op. cit., p. 100
Sacrae Rotae Romanae Decisionum Recentiorum a Prospero Farinaccio J. C. Romano Selectarum, Pars Tercia, Venetiis, 1716, fols. 3-8
A. Hamman, op. cit., pp. 146,147
J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo, op. cit., p. 122
Jacques Le Goff, La Civilisation de l’Occident Médieval, Paris, Ed. Flammarion, 1982, p. 253

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

AS ESCRITURAS, VERSUS TRADIÇÃO E MAGISTÉRIO

O crente moderno vê-se confrontado com uma Igreja secular em que, supostamente já nasceu nela e, nesta qualidade, em que o peso mental por ela exercido é bastante grande, como facilmente se compreenderá. Enfim, numa palavra, por nascimento, pertencemos a uma Igreja - já nascemos cristãos! Que maravilha! Só que, para desgosto nosso, ninguém nasce cristão, este faz-se!
Assim, pertencer a uma confissão religiosa, qualquer que ela seja, tem alguma correspondência com o ser-se cristão? Acabámos de ver, de uma forma sintética, como tudo começou e, no quanto se tornou até chegar aos nossos dias! Ficámos a conhecer, sem segundas intenções, o que é que somos quando dizemos que pertencemos à confissão religiosa conhecida por - Igreja Católica Apostólica Romana.
Já vimos esta Igreja como instituição, agora, pensamos já estar em condições de averiguar as diferentes doutrinas por ela engendradas. Uma vez mais, cada uma delas terá que ter, repetimos, para ser verdadeira, o apoio do Cânone - as Sagradas Escrituras! Caso contrário, por muito sublimes e eruditas que estas possam ser, não passam, embora lamentemos dizê-lo - de postulados humanos!
Nesta qualidade, caso as suas doutrinas se afastem da Verdade, ela própria, como entidade religiosa, afinal, cairá na sua própria armadilha, isto é, será igualmente catalogada de – SEITA! Se assim cataloga as demais, sem que para tal tenha sido mandatada, e se os seus ensinos não estão em conformidade com as Escrituras, então, por que não o é ela própria, caso mereça esta designação? Porventura estará isenta desta qualificação, caso as suas doutrinas não tenham base bíblica, escriturística? Pensamos que, por uma questão de coerência e de bom senso, seria ilegítima tal isenção! Vejamos as suas doutrinas, para que possamos tirar as nossas conclusões.

1- A Transmissão da Revelação
Para a confissão religiosa - Igreja Católica Apostólica Romana – a revelação da vontade de Deus aos homens, manifesta-se de diversas maneiras, a saber: 1- As Escrituras; 2- A Tradição; 3- O Magistério da Igreja. Isto quer dizer que, para conhecer, indicar e interpretar a vontade de Deus, esta confissão religiosa tem estes três métodos!
Vejamos como esta define cada um destes métodos interpretativos das Escrituras, para que o crente melhor possa conhecer Deus. A este respeito conheçamos o que preconiza o Catecismo, órgão oficial desta confissão:
a) As Escrituras
“A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do espírito Santo”. Até parece que existe alguma outra Sagrada Escritura que o não seja!

b) A Tradição
“A Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito da verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação”.  Infelizmente, não é o caso!

c) O Magistério da Igreja
“O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo, isto é, aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma”. Com que base escriturística se poderá fazer tão grave e solene afirmação?

Acerca deste último recurso desta confissão religiosa para a correcta interpretação da Palavra de Deus, acrescentaremos um interessante pormenor: “Todavia este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido (…)”. O que é que isto quererá dizer? Para já, com tanta regra de interpretação e mesmo assim, não vá a Igreja enganar-se, foi necessário decretar, no século XI, a sentença nº 27 na Didactus Papae que diz, recordamo-lo: “A Igreja Romana nunca errou nem errará (…)!
Muito se tem e continua a fazer para que os cristãos não vivam mais separados - católicos, protestantes, ortodoxos, etc. Agora é moda eclesiástica falar-se da aproximação do Grande Jubileu! Este seria, pensam, o grande momento, a suprema oportunidade para que se possa esquecer diferendos e olhar mais para os pontos de união. Só que, à partida, existe, por enquanto, um grande obstáculo - a primazia de Roma! Quem dirige quem? Quem ordena? Vejamos, brevemente, algumas das vertentes inerentes a uma hipotética união.

2- As Escrituras
O Papa João Paulo II, ao ser questionado em relação a esta “unidade perdida”, a certa altura disse: “É, de facto, necessário saber qual destas Igrejas ou comunidades é a de Cristo, pois Ele só fundou uma Igreja, a única que pode falar em Seu nome. (…). Não é possível imaginar que esta Igreja, instituída por Cristo sobre o fundamento dos apóstolos e de Pedro, não seja una”. Entrevistado, o Papa recordou um encontro ecuménico dos representantes das comunidades protestantes, nos Camarões. E, ao seu interlocutor disse uma frase ali dita: “sabemos que estamos divididos, mas não sabemos porquê?”
E quanto a nós, será que conhecemos a razão? Apontemos uma, possível, primeira causa para esta divisão: Cremos que este actual papa, assim como muitos outros que o antecederam, uma vez mais, se esqueceram das suas raízes! Recordamos aqui o Papa Gregório I, (590-604), mais conhecido por S. Gregório Magno. Para este grande papa, assim como para a antiguidade cristã, tendo em conta que ainda estamos relativamente perto da fonte – a Igreja primitiva - o Livro por excelência é a Bíblia. Vejamos como esta personagem se expressou:

a) Em relação à Bíblia, ela é: “1- A carta que Deus escreve aos homens para manifestar os seus próprios segredos; 2- O espelho que permite conhecermo-nos a nós mesmos; 3- O campo de trigo que alimenta a alma; 4- O tesouro inesgotável”.

b) Em relação à sua leitura: “1- Uma visão antecipada da glória divina; 2- Não abandonarmos a sua leitura sejam quais forem as nossas ocupações e tribulações; 3- Procurar livros espirituais e comentários da Escritura; 4- Entregarmo-nos à leitura com esforço, perseverança e fidelidade; 5- Para podermos chegar à compunção pelas faltas passadas e à contemplação das realidades eternas.”
Com efeito, as Sagrada Escrituras continuam a ser, tal como no passado distante, no tempo deste Papa e no do actual, a fonte da doutrina cristã! Que outra poderia consistir? Mas, infelizmente, com o rodar do tempo, tudo foi mudando; o próprio tempo e as vontades, como disse o poeta, não é verdade?! Assim, como corolário desta situação apontemos uma segunda causa: será que as Escrituras têm a resposta a esta e a outras questões? Uma delas, pensamos encontrá-la já no Antigo Testamento, a saber: “Porventura andarão dois homens juntos, sem que estejam de acordo?” - Amós 3:3.
No Novo Testamento, Jesus ao falar da metáfora do - pastor e das ovelhas - a certa altura disse que haverá: “(…) um só rebanho e um só Pastor” - S. João 10:16. A imagem é deveras esclarecedora: Um só Deus, uma só doutrina, uma só Igreja! O apóstolo S. Paulo, à luz desta metáfora, de raciocínio elementar, declara enfaticamente aos crentes de Éfeso que: “existe um só Senhor, uma só fé, um só baptismo” – Efésios 4:5. Ora, isto é mesmo assim. O Papa também o sabe; só que, por vezes se esquece! Se assim é, qual a razão pela qual a cristandade insiste em estar dividida?!
Será assim tão difícil saber o porquê? Cremos, e esperamos não estar a ser orgulhosos ao pensarmos que não! O mesmo apóstolo dá mais algumas pistas para a compreensão desta, aparente, incompreensível questão. Vejamos: “(…) Que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que há de comum entre a luz e as trevas? Que acordo há entre Cristo e Belial (confusão)? Ou que parte tem o fiel com o infiel? E que conciliação há entre o templo de Deus e os ídolos? (…).” – II Coríntios 6:14-16
Portanto, S. Paulo apresenta aqui, a este efeito, pensamos, uma série de questões. Em raciocínio linear, quando duas ou mais entidades estão divididas é porque aconteceu, das duas uma: 1- Ou estão ambas erradas; 2- Ou uma delas é verdadeira. Iremos tecer alguns comentários para que possamos ver um pouco mais claro e, ao mesmo tempo, fazer compreender os nossos pontos de vista:
• protestantismo, em geral, pensa a Igreja a partir das Escrituras, enquanto que o catolicismo raciocina exactamente ao contrário, isto é, pensa a Escritura a partir da Igreja!
• exegeta protestante - tem a plena convicção de que quando explica um texto, ele não tem outra garantia, para a verdade da sua fé, o texto, nada mais! Porque o risco que corre é o da fé, visto que a interpretação das Escrituras não repousa a não ser nelas mesmas!
• exegeta católico - como é que faz? A interpretação de determinado texto, forçosamente, terá que estar em conformidade, em primeiro lugar, com os dogmas da Igreja! É por isso que nem sempre se encontram nas Escrituras, como veremos mais abaixo, apoio escriturístico para muitas das suas doutrinas! A Escritura é, contrariamente ao que pensa esta confissão religiosa, o princípio que regulamenta a Igreja! Não é o inverso! E porquê? Repetimos: porque esta última lhe é posterior!

Qual deverá ser, pois, o dever mais elementar e, ao mesmo tempo, o mais sagrado do intérprete? Como resposta, subscrevemos totalmente estas palavras: “Não conhecemos outro método a respeito do texto do que uma inteira disponibilidade de escutar honestamente o texto, mesmo se o que ele nos diz é estranho ou contradiz certas das nossas concepções mais queridas. Para compreender e explicar o texto, faremos, portanto, abstracção das nossas opiniões filosóficas e teológicas pessoais (…)”.
Logo, prezado leitor, será que, à luz do exposto, se poderá encontrar uma resposta para a grande preocupação expressa; aquela que o Papa ouviu naquele encontro ecuménico, a saber: “sabemos que estamos divididos, mas não sabemos porquê” ? Mas, pelo quanto foi dito até aqui, já não temos qualquer dificuldade em saber o porquê da separação entre os cristãos, não é verdade?

3- A Tradição
Gostaríamos de inserir aqui a adaptação do excelente poema de Sam Walter Foss, o qual ilustra magistralmente o papel e o peso que a Tradição tem tido ao longo dos séculos. Leiamo-lo devagar e com muita atenção:

A Gesta do Bezerro

I
Havia um certo bezerro
que ao voltar ao seu curral
cometeu um grande erro
para ele natural

II
Em vez de directamente
seguir do pasto à porteira
decidiu, indiferente
fazer à sua maneira

III
Inventou um trilho novo
ao passar pela floresta
Deu mil voltas, o andarilho
para ele, isto era festa

IV
Veio atrás, um cão perdido
que foi seguindo o bezerro
repetindo, sem sentido
cada curva, cada erro

V
À frente do seu rebanho
uma ovelhinha faceira
sem pensar no seu tamanho
repetiu a mesma asneira

VI
Um a um, a carneirada
seguiu nesse mesmo trilho
que passou a ser estrada
para qualquer andarilho

VII
Nessa estrada de curvas, numa carroça
veio, um dia, um fazendeiro
queria voltar para a roça
e perdeu o dia inteiro

VIII
Surgiu daí um caminho
com voltas e curvas mais
que passou a ser seguido
por homens e animais

IX
E muitos anos já faz
que este erro continua
muita gente, ainda faz
as voltas mil, dessa rua

X
Hoje, ao subir a montanha
pode-se ver, lá do alto
essa estrada estranha
um zigue-zague d’asfalto

XI
Ninguém corrige o erro
ninguém faz novos planos
seguem atrás de um bezerro
morto há tantos anos

Então, prezado leitor, que acha? Não tem sido assim? Não continua ainda a sê-lo? Não será que a resposta também poderá estar nesta reflexão: “(…) A antiguidade de um erro não faz dele uma verdade”! (sublinhado nosso)
Numa outra Carta Encíclica, o Papa afirma algo que não podia estar mais de acordo com as Escrituras, visto que as cita (cf. Actos 5:29), ao dizer que: “Os cristãos têm por honra própria obedecer a Deus antes que aos homens”. Mas, porventura poderia ser de outra forma? Estaria o homem em primeiro lugar na nossa vida e não Deus? Se realmente somos o que dizemos ser - cristãos - então, escrituristicamente falando, é impossível que a obediência ao homem venha antes da que devemos ao nosso Criador!
Já que Jesus, no Seu tempo tinha chamado à atenção os professos adoradores de Deus, ao dizer: “(…) E assim anulastes a palavra de Deus em nome da vossa tradição” – S. Mateus 15:6. Temos, de igual modo a este respeito, o testemunho de S. Paulo quando advertiu os crentes ao dizer: “Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo e não em Cristo” – Colossenses 2:8. E, para fechar o ciclo das Escrituras, citaremos o grande conselho daquele que esta confissão religiosa afirma ter sido o primeiro papa, (mais abaixo veremos esta problemática), quando disse: “Sabei que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição dos vossos pais (…)” – I Pedro 1:18.
Dá que pensar, não dá prezado amigo, as palavras de Simão Barjonas ao dizer: “fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição (…)”! Portanto, perguntamos: em que é que a nossa maneira de viver era vã? Não quererá dizer que esta não tinha qualquer objectivo, sentido ou verdade? Claro! Isto é, – os ensinos recebidos pela tradição dos nossos pais! Pensamos que sim! Também esta poderá conter ensinos meramente humanos e não escriturísticos! Por isso, é, segundo o apóstolo – “vã”! Compete-nos examinar para que possamos detectar a Verdade dos factos e vivências nos quais escoramos a nossa fé! Esta deverá estar alicerçada nas Escrituras, aquela que é a Norma, tal como vimos acima, não na Tradição!
Como veremos mais abaixo em relação às doutrinas desta confissão religiosa, alguns dizem que, certas doutrinas, apareceram na Igreja, tendo como único apoio a Tradição resultante da Igreja primitiva. Mas esta pretensão terá algum fundamento? O que encontramos nos escritos dos Pais apostólicos e da Igreja, quanto a uma Tradição escrita, revelam-nos exactamente o contrário, visto que para esta, as Escrituras, sempre foram a Norma! Vejamos alguns exemplos, entre outros:

a) Ireneu (125-202)
Este declara: “Não conhecemos o plano da nossa salvação senão por aqueles que nos trouxeram o Evangelho. Este, eles o pregaram primeiro. Depois, pela vontade de Deus, eles o transmitiram nas Escrituras para que o evangelho se torne a base e coluna da nossa fé”.

b) Atanásio (298-373)
Afirma que: “Estas (Escrituras) são a fonte da salvação; é só por elas que podemos aprender a disciplina da piedade. Que ninguém lhe adicione nada; que ninguém nada lhe retire. Foi por causa disto que o Senhor envergonhou os saduceus, ao dizer: «Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras (…)» – S. Mateus 22:29”.

c) Cirilo de Jerusalém (315-386)
Este disse: ”No que diz respeito aos santos mistérios da fé, nada se deve dizer sem a autoridade das sagradas Escrituras. (…) Mas mesmo em relação a mim, não creiam no que vos digo sem terem visto os meus ensinos demonstrados nas Escrituras Divinas. A salvação em que cremos depende, não de engenhoso artifício de raciocínio, mas na demonstração das Sagradas Escrituras”.

d) João Crisóstomo (347-407)
Este afirmou: “(…) quando se trata de coisas divinas, não seria uma loucura permanecermos sob as opiniões dos outros, nós que temos uma regra pela qual podemos examinar todas as coisas (…)?. É por isso que vos exorto, a que não permaneçais, de modo algum, no que os outros pensam, mas que consulteis as Escrituras acerca disso”.

Pelo quanto pudemos expor, se existe um assunto acerca do qual a Tradição dos Pais está de acordo é, insofismavelmente, no reconhecimento da autoridade das Escrituras em matéria de fé, não da Tradição!
Será possível o tal entendimento de que acima falávamos? Mas como se poderá dialogar seriamente se não se consegue chegar a um acordo, desde o início, acerca da base da autoridade que é: 1- Para o protestante são as Escrituras a base e fundamento da Igreja; 2- Para o católico, é a Igreja que regulamenta as Escrituras e respectivos ensinos escriturísticos? Como haver consenso? Das três vertentes só existe uma autoridade : Ou as Escrituras, ou a Tradição, ou Magistério!

Bibliografia:
Catecismo, p. 35, nº 81
Idem, p. 36, nº 81
Idem, p. 36, nº 85
Idem, p. 36, nº 86
João Paulo II, Atravessar o Limiar da Esperança, pp. 136-139
“Gregório I” in Nova Enciclopédia Larousse, Vol. 11, p. 3430
José Mattoso, Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 326
Idem, pp. 326,327
Epístola Festal 39:6
Leituras Catequéticas, leitura 4:17
Segunda Epístola aos Coríntios, Homilia 13, cap. 7:1