O crente moderno vê-se confrontado com uma Igreja secular em que, supostamente já nasceu nela e, nesta qualidade, em que o peso mental por ela exercido é bastante grande, como facilmente se compreenderá. Enfim, numa palavra, por nascimento, pertencemos a uma Igreja - já nascemos cristãos! Que maravilha! Só que, para desgosto nosso, ninguém nasce cristão, este faz-se!
Assim, pertencer a uma confissão religiosa, qualquer que ela seja, tem alguma correspondência com o ser-se cristão? Acabámos de ver, de uma forma sintética, como tudo começou e, no quanto se tornou até chegar aos nossos dias! Ficámos a conhecer, sem segundas intenções, o que é que somos quando dizemos que pertencemos à confissão religiosa conhecida por - Igreja Católica Apostólica Romana.
Já vimos esta Igreja como instituição, agora, pensamos já estar em condições de averiguar as diferentes doutrinas por ela engendradas. Uma vez mais, cada uma delas terá que ter, repetimos, para ser verdadeira, o apoio do Cânone - as Sagradas Escrituras! Caso contrário, por muito sublimes e eruditas que estas possam ser, não passam, embora lamentemos dizê-lo - de postulados humanos!
Nesta qualidade, caso as suas doutrinas se afastem da Verdade, ela própria, como entidade religiosa, afinal, cairá na sua própria armadilha, isto é, será igualmente catalogada de – SEITA! Se assim cataloga as demais, sem que para tal tenha sido mandatada, e se os seus ensinos não estão em conformidade com as Escrituras, então, por que não o é ela própria, caso mereça esta designação? Porventura estará isenta desta qualificação, caso as suas doutrinas não tenham base bíblica, escriturística? Pensamos que, por uma questão de coerência e de bom senso, seria ilegítima tal isenção! Vejamos as suas doutrinas, para que possamos tirar as nossas conclusões.
Para a confissão religiosa - Igreja Católica Apostólica Romana – a revelação da vontade de Deus aos homens, manifesta-se de diversas maneiras, a saber: 1- As Escrituras; 2- A Tradição; 3- O Magistério da Igreja. Isto quer dizer que, para conhecer, indicar e interpretar a vontade de Deus, esta confissão religiosa tem estes três métodos!
Vejamos como esta define cada um destes métodos interpretativos das Escrituras, para que o crente melhor possa conhecer Deus. A este respeito conheçamos o que preconiza o Catecismo, órgão oficial desta confissão:
a) As Escrituras
“A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do espírito Santo”. Até parece que existe alguma outra Sagrada Escritura que o não seja!
b) A Tradição
“A Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus, confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito da verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação”. Infelizmente, não é o caso!
c) O Magistério da Igreja
“O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo, isto é, aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o bispo de Roma”. Com que base escriturística se poderá fazer tão grave e solene afirmação?
Acerca deste último recurso desta confissão religiosa para a correcta interpretação da Palavra de Deus, acrescentaremos um interessante pormenor: “Todavia este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido (…)”. O que é que isto quererá dizer? Para já, com tanta regra de interpretação e mesmo assim, não vá a Igreja enganar-se, foi necessário decretar, no século XI, a sentença nº 27 na Didactus Papae que diz, recordamo-lo: “A Igreja Romana nunca errou nem errará (…)!
Muito se tem e continua a fazer para que os cristãos não vivam mais separados - católicos, protestantes, ortodoxos, etc. Agora é moda eclesiástica falar-se da aproximação do Grande Jubileu! Este seria, pensam, o grande momento, a suprema oportunidade para que se possa esquecer diferendos e olhar mais para os pontos de união. Só que, à partida, existe, por enquanto, um grande obstáculo - a primazia de Roma! Quem dirige quem? Quem ordena? Vejamos, brevemente, algumas das vertentes inerentes a uma hipotética união.
O Papa João Paulo II, ao ser questionado em relação a esta “unidade perdida”, a certa altura disse: “É, de facto, necessário saber qual destas Igrejas ou comunidades é a de Cristo, pois Ele só fundou uma Igreja, a única que pode falar em Seu nome. (…). Não é possível imaginar que esta Igreja, instituída por Cristo sobre o fundamento dos apóstolos e de Pedro, não seja una”. Entrevistado, o Papa recordou um encontro ecuménico dos representantes das comunidades protestantes, nos Camarões. E, ao seu interlocutor disse uma frase ali dita: “sabemos que estamos divididos, mas não sabemos porquê?”
E quanto a nós, será que conhecemos a razão? Apontemos uma, possível, primeira causa para esta divisão: Cremos que este actual papa, assim como muitos outros que o antecederam, uma vez mais, se esqueceram das suas raízes! Recordamos aqui o Papa Gregório I, (590-604), mais conhecido por S. Gregório Magno. Para este grande papa, assim como para a antiguidade cristã, tendo em conta que ainda estamos relativamente perto da fonte – a Igreja primitiva - o Livro por excelência é a Bíblia. Vejamos como esta personagem se expressou:
a) Em relação à Bíblia, ela é: “1- A carta que Deus escreve aos homens para manifestar os seus próprios segredos; 2- O espelho que permite conhecermo-nos a nós mesmos; 3- O campo de trigo que alimenta a alma; 4- O tesouro inesgotável”.
b) Em relação à sua leitura: “1- Uma visão antecipada da glória divina; 2- Não abandonarmos a sua leitura sejam quais forem as nossas ocupações e tribulações; 3- Procurar livros espirituais e comentários da Escritura; 4- Entregarmo-nos à leitura com esforço, perseverança e fidelidade; 5- Para podermos chegar à compunção pelas faltas passadas e à contemplação das realidades eternas.”
Com efeito, as Sagrada Escrituras continuam a ser, tal como no passado distante, no tempo deste Papa e no do actual, a fonte da doutrina cristã! Que outra poderia consistir? Mas, infelizmente, com o rodar do tempo, tudo foi mudando; o próprio tempo e as vontades, como disse o poeta, não é verdade?! Assim, como corolário desta situação apontemos uma segunda causa: será que as Escrituras têm a resposta a esta e a outras questões? Uma delas, pensamos encontrá-la já no Antigo Testamento, a saber: “Porventura andarão dois homens juntos, sem que estejam de acordo?” - Amós 3:3.
No Novo Testamento, Jesus ao falar da metáfora do - pastor e das ovelhas - a certa altura disse que haverá: “(…) um só rebanho e um só Pastor” - S. João 10:16. A imagem é deveras esclarecedora: Um só Deus, uma só doutrina, uma só Igreja! O apóstolo S. Paulo, à luz desta metáfora, de raciocínio elementar, declara enfaticamente aos crentes de Éfeso que: “existe um só Senhor, uma só fé, um só baptismo” – Efésios 4:5. Ora, isto é mesmo assim. O Papa também o sabe; só que, por vezes se esquece! Se assim é, qual a razão pela qual a cristandade insiste em estar dividida?!
Será assim tão difícil saber o porquê? Cremos, e esperamos não estar a ser orgulhosos ao pensarmos que não! O mesmo apóstolo dá mais algumas pistas para a compreensão desta, aparente, incompreensível questão. Vejamos: “(…) Que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que há de comum entre a luz e as trevas? Que acordo há entre Cristo e Belial (confusão)? Ou que parte tem o fiel com o infiel? E que conciliação há entre o templo de Deus e os ídolos? (…).” – II Coríntios 6:14-16
Portanto, S. Paulo apresenta aqui, a este efeito, pensamos, uma série de questões. Em raciocínio linear, quando duas ou mais entidades estão divididas é porque aconteceu, das duas uma: 1- Ou estão ambas erradas; 2- Ou uma delas é verdadeira. Iremos tecer alguns comentários para que possamos ver um pouco mais claro e, ao mesmo tempo, fazer compreender os nossos pontos de vista:
• protestantismo, em geral, pensa a Igreja a partir das Escrituras, enquanto que o catolicismo raciocina exactamente ao contrário, isto é, pensa a Escritura a partir da Igreja!
• exegeta protestante - tem a plena convicção de que quando explica um texto, ele não tem outra garantia, para a verdade da sua fé, o texto, nada mais! Porque o risco que corre é o da fé, visto que a interpretação das Escrituras não repousa a não ser nelas mesmas!
• exegeta católico - como é que faz? A interpretação de determinado texto, forçosamente, terá que estar em conformidade, em primeiro lugar, com os dogmas da Igreja! É por isso que nem sempre se encontram nas Escrituras, como veremos mais abaixo, apoio escriturístico para muitas das suas doutrinas! A Escritura é, contrariamente ao que pensa esta confissão religiosa, o princípio que regulamenta a Igreja! Não é o inverso! E porquê? Repetimos: porque esta última lhe é posterior!
Qual deverá ser, pois, o dever mais elementar e, ao mesmo tempo, o mais sagrado do intérprete? Como resposta, subscrevemos totalmente estas palavras: “Não conhecemos outro método a respeito do texto do que uma inteira disponibilidade de escutar honestamente o texto, mesmo se o que ele nos diz é estranho ou contradiz certas das nossas concepções mais queridas. Para compreender e explicar o texto, faremos, portanto, abstracção das nossas opiniões filosóficas e teológicas pessoais (…)”.
Logo, prezado leitor, será que, à luz do exposto, se poderá encontrar uma resposta para a grande preocupação expressa; aquela que o Papa ouviu naquele encontro ecuménico, a saber: “sabemos que estamos divididos, mas não sabemos porquê” ? Mas, pelo quanto foi dito até aqui, já não temos qualquer dificuldade em saber o porquê da separação entre os cristãos, não é verdade?
3- A Tradição
Gostaríamos de inserir aqui a adaptação do excelente poema de Sam Walter Foss, o qual ilustra magistralmente o papel e o peso que a Tradição tem tido ao longo dos séculos. Leiamo-lo devagar e com muita atenção:
A Gesta do Bezerro
I
Havia um certo bezerro
que ao voltar ao seu curral
cometeu um grande erro
para ele natural
II
Em vez de directamente
seguir do pasto à porteira
decidiu, indiferente
fazer à sua maneira
III
Inventou um trilho novo
ao passar pela floresta
Deu mil voltas, o andarilho
para ele, isto era festa
IV
Veio atrás, um cão perdido
que foi seguindo o bezerro
repetindo, sem sentido
cada curva, cada erro
V
À frente do seu rebanho
uma ovelhinha faceira
sem pensar no seu tamanho
repetiu a mesma asneira
VI
Um a um, a carneirada
seguiu nesse mesmo trilho
que passou a ser estrada
para qualquer andarilho
VII
Nessa estrada de curvas, numa carroça
veio, um dia, um fazendeiro
queria voltar para a roça
e perdeu o dia inteiro
VIII
Surgiu daí um caminho
com voltas e curvas mais
que passou a ser seguido
por homens e animais
IX
E muitos anos já faz
que este erro continua
muita gente, ainda faz
as voltas mil, dessa rua
X
Hoje, ao subir a montanha
pode-se ver, lá do alto
essa estrada estranha
um zigue-zague d’asfalto
XI
Ninguém corrige o erro
ninguém faz novos planos
seguem atrás de um bezerro
morto há tantos anos
Então, prezado leitor, que acha? Não tem sido assim? Não continua ainda a sê-lo? Não será que a resposta também poderá estar nesta reflexão: “(…) A antiguidade de um erro não faz dele uma verdade”! (sublinhado nosso)
Numa outra Carta Encíclica, o Papa afirma algo que não podia estar mais de acordo com as Escrituras, visto que as cita (cf. Actos 5:29), ao dizer que: “Os cristãos têm por honra própria obedecer a Deus antes que aos homens”. Mas, porventura poderia ser de outra forma? Estaria o homem em primeiro lugar na nossa vida e não Deus? Se realmente somos o que dizemos ser - cristãos - então, escrituristicamente falando, é impossível que a obediência ao homem venha antes da que devemos ao nosso Criador!
Já que Jesus, no Seu tempo tinha chamado à atenção os professos adoradores de Deus, ao dizer: “(…) E assim anulastes a palavra de Deus em nome da vossa tradição” – S. Mateus 15:6. Temos, de igual modo a este respeito, o testemunho de S. Paulo quando advertiu os crentes ao dizer: “Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo e não em Cristo” – Colossenses 2:8. E, para fechar o ciclo das Escrituras, citaremos o grande conselho daquele que esta confissão religiosa afirma ter sido o primeiro papa, (mais abaixo veremos esta problemática), quando disse: “Sabei que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição dos vossos pais (…)” – I Pedro 1:18.
Dá que pensar, não dá prezado amigo, as palavras de Simão Barjonas ao dizer: “fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, recebida por tradição (…)”! Portanto, perguntamos: em que é que a nossa maneira de viver era vã? Não quererá dizer que esta não tinha qualquer objectivo, sentido ou verdade? Claro! Isto é, – os ensinos recebidos pela tradição dos nossos pais! Pensamos que sim! Também esta poderá conter ensinos meramente humanos e não escriturísticos! Por isso, é, segundo o apóstolo – “vã”! Compete-nos examinar para que possamos detectar a Verdade dos factos e vivências nos quais escoramos a nossa fé! Esta deverá estar alicerçada nas Escrituras, aquela que é a Norma, tal como vimos acima, não na Tradição!
Como veremos mais abaixo em relação às doutrinas desta confissão religiosa, alguns dizem que, certas doutrinas, apareceram na Igreja, tendo como único apoio a Tradição resultante da Igreja primitiva. Mas esta pretensão terá algum fundamento? O que encontramos nos escritos dos Pais apostólicos e da Igreja, quanto a uma Tradição escrita, revelam-nos exactamente o contrário, visto que para esta, as Escrituras, sempre foram a Norma! Vejamos alguns exemplos, entre outros:
a) Ireneu (125-202)
Este declara: “Não conhecemos o plano da nossa salvação senão por aqueles que nos trouxeram o Evangelho. Este, eles o pregaram primeiro. Depois, pela vontade de Deus, eles o transmitiram nas Escrituras para que o evangelho se torne a base e coluna da nossa fé”.
b) Atanásio (298-373)
Afirma que: “Estas (Escrituras) são a fonte da salvação; é só por elas que podemos aprender a disciplina da piedade. Que ninguém lhe adicione nada; que ninguém nada lhe retire. Foi por causa disto que o Senhor envergonhou os saduceus, ao dizer: «Estais enganados, porque desconheceis as Escrituras (…)» – S. Mateus 22:29”.
c) Cirilo de Jerusalém (315-386)
Este disse: ”No que diz respeito aos santos mistérios da fé, nada se deve dizer sem a autoridade das sagradas Escrituras. (…) Mas mesmo em relação a mim, não creiam no que vos digo sem terem visto os meus ensinos demonstrados nas Escrituras Divinas. A salvação em que cremos depende, não de engenhoso artifício de raciocínio, mas na demonstração das Sagradas Escrituras”.
d) João Crisóstomo (347-407)
Este afirmou: “(…) quando se trata de coisas divinas, não seria uma loucura permanecermos sob as opiniões dos outros, nós que temos uma regra pela qual podemos examinar todas as coisas (…)?. É por isso que vos exorto, a que não permaneçais, de modo algum, no que os outros pensam, mas que consulteis as Escrituras acerca disso”.
Pelo quanto pudemos expor, se existe um assunto acerca do qual a Tradição dos Pais está de acordo é, insofismavelmente, no reconhecimento da autoridade das Escrituras em matéria de fé, não da Tradição!
Será possível o tal entendimento de que acima falávamos? Mas como se poderá dialogar seriamente se não se consegue chegar a um acordo, desde o início, acerca da base da autoridade que é: 1- Para o protestante são as Escrituras a base e fundamento da Igreja; 2- Para o católico, é a Igreja que regulamenta as Escrituras e respectivos ensinos escriturísticos? Como haver consenso? Das três vertentes só existe uma autoridade : Ou as Escrituras, ou a Tradição, ou Magistério!
Bibliografia:
Catecismo, p. 35, nº 81
Idem, p. 36, nº 81
Idem, p. 36, nº 85
Idem, p. 36, nº 86
João Paulo II, Atravessar o Limiar da Esperança, pp. 136-139
“Gregório I” in Nova Enciclopédia Larousse, Vol. 11, p. 3430
José Mattoso, Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 326
Idem, pp. 326,327
Epístola Festal 39:6
Leituras Catequéticas, leitura 4:17
Segunda Epístola aos Coríntios, Homilia 13, cap. 7:1
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