A confissão religiosa – Igreja Católica Apostólica Romana – mantém a canonicidade dos sete livros Apócrifos, assim como a das adições que, como já foi mencionado, não fazem parte do Cânone hebraico. Em defesa de tal posição avançam com algumas afirmações:
Que as primeiras versões continham os Apócrifos. Se a Septuaginta (LXX) contém os Apócrifos, será assim tão certo, só por este facto, de que os judeus de Alexandria a tenham considerado integralmente canónico o conteúdo deste Cânone? Filão de Alexandria, nos seus escritos, nunca os cita!
É dito também que os Pais da Igreja os citam. E como tal é reconhecida a autoridade destes escritos! Nos quadros comparativos, mais abaixo, demonstramos exactamente o contrário!
Seria de estranhar que, através dos séculos, se reconhecesse como inspirado um Antigo Testamento diferente daquele que Jesus reconheceu como tal, visto que os Apócrifos são adições posteriores ao profeta Malaquias, o qual, “na tradição judaica é considerado como o último, o selo, dos profetas”! Os grandes escritores da Igreja, desde o início até ao século XVI nunca aceitaram os pseudocanónicos como inspirados.
Citaremos alguns Pais da Igreja, pois estes têm uma característica que lhes é comum – todos confirmam que o Cânone contém 22 livros! Vejamos: Eusébio de Cesareia (340); Atanásio (373); Cirilo de Jerusalém (386); Gregório Nanzianzeno (329-390); Gregório, bispo de Nissa (394); João Damasceno (657-749).
Não deixa de ser bastante interessante e revelador conhecermos o que S. Jerónimo (347-420) refere acerca dos acrescentos ao Cânone hebraico. Ele diz que: “acerca da História de Susana, os três jovens, Bel e o Dragão, tinha ouvido de certo judeu ensinar que não passavam de ficção de alguns gregos”.
Perante o exposto, retomaremos a citação do autor, quando afirma que “foi a Igreja do Antigo Testamento e a Igreja do Novo Testamento quem determinou os livros que são canónicos e os que não são”. Acerca disto, como primeiro comentário dissemos que, até certo ponto esta afirmação está correcta! Vejamos o porquê:
a) Quanto à Igreja do Antigo testamento: - O que é que determinou? Tal como pudemos ver até aqui, não fez mais do que, tal como já o dissemos, confirmar o que o tempo e o uso se encarregou de demonstrar – manter os 22 livros como única regra de fé e norma a seguir!
b) Quanto à Igreja do Novo Testamento: - O que é que ela homologou? À luz da História factos são factos, independentemente de qualquer opinião pessoal; esta revela, ao prezado leitor e a nós próprios, que a Igreja não elaborou o Cânone do Novo Testamento mas que, apenas e só, expressou o que já era sentimento unânime das Igrejas em geral! Assim, no ano 397 d.C. teve lugar o Concílio de Cartago onde foram ratificados os 27 livros que constituem o Novo Testamento!
Como já vimos, tanto os judeus como os cristãos primitivos não aceitavam como inspirados os Apócrifos. Uma das razões apresentadas para a sua rejeição é o facto de terem sido escritos quando não havia profetas. Mas, o próprio exame destes livros mostra que não são inspirados. Vejamos alguns pormenores com a atenção que nos merecem:
Nenhum escritor inspirado poderia ter escrito o que se encontra na seguinte declaração do autor do 2º livro de Macabeus: “E o que Jasão de Cirene narra em cinco livros que nós vamos resumir num só (…) para obter gratidão de muitos (…) nós esforçamo-nos para expô-los em forma resumida”. – II Macabeus 2:23-28 (sublinhado nosso)
Ou ainda: “(…) terminarei, também, com isto a minha narração. Se ela está, felizmente, concebida e ordenada, como convém a uma História, era este o meu desejo; mas se está imperfeita e medíocre, releve-se-me a falta” – II Macabeus 15:38,39
Nestes livros pseudocanónicos encontram-se:
a) Inexactidões históricas:
No livro de Judite, supõe-se que Nabucodonosor é rei dos assírios e vive em Ninive – cf. Judite 1:5,10. Niníve foi tomada em 612 a. C. por uma coligação de forças: Babilónia, Medos e Citas. O grande senhor era, não Nabucodonosor, mas o seu pai Nabopolassar (625-605). Quando o filho Nabucodonosor reina (605-562); portanto, Ninive, já muito antes do seu reinado, tinha sido destruída!
No capítulo pseudocanónico do profeta Daniel lemos que este passou 6 dias na cova dos leões – Daniel 14:31. No respectivo capítulo canónico, a este respeito, afirma que o profeta passou unicamente uma noite! – Daniel 6:19,20,24 (sublinhado nosso).
No livro de Macabeus lê-se que Alexandre Magno repartiu o império entre os três generais “ainda em vida” – I Macabeus 1:7. Esta afirmação contraria a História, visto que esta revela que Alexandre morreu subitamente em Junho de 323 a.C. e “sem ter podido designar sucessor”! (sublinhado nosso).
A morte de Antíoco IV Epifânio é apresentada de três maneiras diferentes! 1- “(…) agora, morro de tristeza (…)” – I Macabeus 6:13; 2- “Esmagado por uma chuva de pedras.” II Macabeus 1:16; 3- (…) prostrado pela doença (…) enfim, ferido mortalmente (…)” – II Macabeus 9:21,28.
b) Baixas normas de conduta
A mentira é sancionada. No livro de Tobias, o anjo Rafael, a princípio, apresenta-se: 1- como sendo “dos filhos de Israel” – Tobias 5:5; 2- como “Azarias, filho do grande Ananias” – Tobias 5:13; 3- diz que é “da tribo de Naftali” – Tobias 7:3; 4- finalmente, acaba por confessar que é “Rafael, um dos sete anjos que assistem diante do Senhor” – Tobias 12:14,15.
Suicídio é louvado – II Macabeus 14:41-45
c) Doutrinas pagãs greco-romanas
• A pré-existência da alma e a incarnação – “Eu era um menino de bom natural, que recebeu em sorte uma alma excelente. Ou antes, como era bom, entrei num corpo intacto” – Sabedoria 8:19,20
• Sacrifícios e orações pelos mortos – “Judas (…) mandou fazer uma colecta, recolhendo cerca de dez mil dracmas que enviou a Jerusalém para que se oferecesse um sacrifício pelo pecado (…) porque se não esperasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles (…). Era este um pensamento santo e piedoso (…) para que os mortos fossem livres das suas faltas” – II Macabeus 12:39,42-46; Baruc 3.4
• Justificação pelas obras – “Em verdade, a esmola liberta a alma da morte e não permite que a alma desça para as trevas” – Tobias 4:10; “(…) pois a esmola livra da morte e limpa todo o pecado” – Tobias 12.9.
• Intercessão dos anjos - Tobias 12:12.
Como conciliar e justificar a asserção das referidas adições? Como fazer face às questões pertinentes e embaraçosas, feitas mais tarde, por aqueles que começavam a ler os textos sagrados e a fazer comparações entre os textos, e entre o ensinado e o vivido? A confissão religiosa, que se diz a continuidade da - Igreja do Antigo Testamento - para impor a sua escolha às demais igrejas teve que esperar muitos séculos para que tal pudesse acontecer!
No Concílio de Trento em 1546, na 4ª sessão, esta confissão religiosa formalmente promulgou finalmente, como artigo de fé, a canonicidade dos acima referidos escritos Apócrifos; desta feita, corta assim, como mais adiante veremos, com séculos de ambiguidades que conduziram a aberta contestação pela Igreja da Reforma, diremos nós, pela Igreja constituída pelos novos leitores das Escrituras.
Cada um dos livros canónicos possui uma qualidade que determinou a sua aceitação. Um livro, contrariamente ao que refere o nosso autor, não é elevado à dignidade e autoridade de Escritura somente por que a Igreja o aceitou, mas porque esta última, na verdade, se apercebeu ser ele de origem divina! Eis aqui toda a diferença entre estes e os “outros”, ditos, inspirados!
Resumindo, podemos concluir que os escritos pseudocanónicos, não reconhecidos pelos judeus nem pela Igreja dos primeiros séculos, foram inseridos no Cânone, apesar de serem desprovidos de inspiração divina, para que algumas doutrinas, como veremos mais abaixo, pudessem circular como sendo a autêntica expressão da vontade de Deus! Para nos apercebermos da utilização dos livros Apócrifos pelos Pais da Igreja – Oriente /
Bibliografica:René Pache, op. cit., p. 156
D. Deden “Malaquias” in Dicionário Enciclopédico da Bíblia, col. 926
História Eclesiástica, livro 6.25
Carta 39.4,7
Primeiras leituras catequéticas, leitura 4.33
Cânone 11
Cânone 8
Livro 4:17
Comentário de Daniel
Henri H. Halley, Manual Bíblico, S. Paulo, Ed. Vida Nova, s.d., Vol. II, p. 659
André Parrot, Ninive et l’Ancien Testament, Neuchatel, Ed. Delachaux & Niestlé, 1953, pp. 58,70
André Parrot, Babylone et l’Ancient Testament, Neuchatel, 1956, pp. 66,87
Jean Hatzfeld, História da Grécia Antiga, 2ª ed., Lisboa, Ed. Europa-América, 1977, pp. 263,264
Cf. Análise detalhada sobre a questão apócrifa: Gleason L. Archer, op. cit., pp. 67-83
Tony André, Les Apocryphes de l’Ancien Testament, Paris, 1903, pp. 22-32
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